Olá Tomás,
Eu sou a Daniela, capitã da Seleção Nacional Feminina de Rugby XV. Tal como tu, represento um grupo de atletas que nutre uma grande paixão pela nossa modalidade e que, apesar de ter pouca expressão no nosso país, não se deixa desmotivar. Aliás, estou certa de que a motivação poderá ser mesmo a grande impulsionadora de muitos feitos e conquistas, uma vez que ambos sabemos como é difícil ser atleta de Rugby em Portugal, representar o país e ter de gerir de forma exímia os vários papéis que desempenhamos na vida. Já para não falar na gestão e investimento financeiro que nem sempre corre a nosso favor. Ambos sabemos disto, mas talvez existam algumas outras coisas sobre as quais eu precise de te falar.
Há uns dias acordei inundada de partilhas e publicações sobre um podcast onde terias estado. Fui ouvir. De início ao fim. E a verdade é que não posso esconder alguma desilusão e, mais do que isso, incompreensão. Esta carta não pretende ser um pelourinho de castigo. Apenas me voluntario como porta-voz de uma comunidade, cada vez maior, para mostrar o nosso desagrado (sendo que não nos revemos nem nos identificamos com algumas das tuas afirmações) e poder deixar a perspetiva de quem vive e joga rugby no feminino.
Depois de algumas das tuas palavras é legítimo que os comentários sobre o rugby feminino sejam algo parecido com “É de loucos como elas vão para dentro de um campo no meio de cabeçadas, placagens e com lesões sempre à espreita”. Mas as tuas próprias palavras são também capazes de nos ajudar a explicar algo que nos parece óbvio no meio desportivo, já que “se calhar, para nós, não é assim tão arriscado porque treinamos muito aquilo”.
A certa altura falavas sobre as diferenças físicas entre a Seleção Portuguesa e outras equipas presentes no Mundial de Rugby. Dizias “Não vamos jogar como se tivéssemos a capacidade física das Fiji, ou da Geórgia...” e continuavas explicando de forma simples o modelo de jogo da seleção. Nesse momento, para mim foi inevitável transportar-me para o panorama feminino e para todos os argumentos que tendem a não validar o rugby para as mulheres: Uma mulher também não procura jogar como se tivesse a capacidade física ou a estrutura de um homem. Usamos as nossas características e jogamos o nosso rugby. Simples... mas, aparentemente, pouco atrativo.
Mas o que é que define, na realidade, um jogo atrativo? Um jogo bonito de se ver, que entusiasme, que nos deixe presos ao ecrã e que levante estádios? Certo, mas então o que seria de tantos outros desportos se esta fosse a premissa de encorajamento? E como poderá um desporto crescer e tornar-se atrativo com esta “publicidade”? Difícil de responder talvez... “Mas por outro lado tu pensas, quando chegas a (...) finais e etc, tu queres é ganhar”. E embora joguemos bonito também, nem sempre estamos lá para isso, queremos é ganhar, e nisso posso garantir que somos tão acérrimas e competitivas como vocês.
Mas não deixamos de ser mulheres, e sendo o rugby um desporto tendencialmente caracterizado como masculino talvez seja preciso uma maior divulgação e incentivo para que mais meninas e mulheres conheçam o rugby e possam elas decidir se gostariam de jogar ou não. Talvez a evolução e crescimento do desporto, no geral, passe por este pequeno detalhe incluviso, tão particular.
Compreendemos que as questões culturais, no nosso país, também influenciam a visibilidade do rugby. Mas sabemos também que esta é uma modalidade em constante evolução, que se adapta e reinventa, como bem referiste na entrevista. O rugby tem acompanhado os novos tempos e as necessidades dos atletas, por isso, a questão é: queremos mesmo ficar para trás e olhar apenas para o desporto masculino?
A cultura é tudo aquilo que a humanidade acrescenta à natureza, e a natureza do rugby está assente em valores muito convictos. O respeito ajuda-nos a aceitar e ver a diversidade como um acrescento necessário: existirão certamente poucos desportos tão inclusivos como o rugby, onde basta olhar para uma equipa para ver como há lugar para diferentes corpos e habilidades. Não será dificil então perceber que a estrutura feminina pode facilmente adaptar-se à exigência do desporto, como em outra qualquer modalidade. Indo mais longe, talvez faça mais sentido falar em resiliência e paixão, ao invés de masculinidade, quando nos impressionamos com “cabeçadas” e “narizes partidos”. E poderia continuar a listar mais valores, que encaixam tão bem em homens como em mulheres, porque para além do que o “rugby traz ao corpo” é sobre tudo isto que o rugby traz à mente... Mas tenho a certeza que os conheces bem, por isso a minha questão é, porquê? Bem sei que o momento apelava às tuas opiniões, num ambiente descontraído e sincero, mas saberás tão bem quanto eu que enquanto capitães, líderes, representantes de algo maior do que nós, o que dizemos tem impacto e pode gerar consequências. Num momento tão importante para o Rugby, no momento com mais visibilidade dos últimos anos, foram aquelas as melhores considerações que decidiste partilhar sobre o rugby feminino? Numa altura onde todos os holofotes apontam para os Lobos, foi aquele o contributo que quiseste dar ao rugby feminino? Sabemos que foi uma pergunta muito concreta e que, a par disso, na resposta reservavas-te claramente ao direito de dizer o que realmente pensavas, mas sendo tu também atleta deste desporto pouco valorizado por cá, tendo também passado por provações e desafios para jogar e representar o país, esperava um pouco mais. Um pouco mais de empatia por quem ama a mesma modalidade, se sacrifica por ela e que, no fundo, só quer o mesmo que tu: jogar.
Nunca ninguém vai gostar de ver rugby feminino se nunca tiver tido essa oportunidade ou se nem sequer souber que existe rugby feminino em Portugal. Da mesma forma que ninguém vai querer ver rugby se essa cultura não existir em Portugal, e assim permanecerão as bancadas da DH intervaladas de espectadores. A proporção, as massas, o investimento, o retorno são tudo palavras importantes neste jogo da visibilidade, mas a responsabilidade também é nossa, que somos da casa, que somos do rugby.
Num país onde sabemos qual é o desporto rei, torna-se inevitável a comparação. Nunca ninguém gostou de futebol feminino, não se conheciam as equipas nem os calendários: “Não é igual”, “Não é atrativo”, “É lento”... No último verão houve quem acordasse mais cedo para ver a Seleção Nacional Feminina de Futebol jogar no Mundial. Ouviram-se fartos elogios e abusou-se da preposição simples “até” antes do verbo “gostei”. Uma abordagem bem analítica para que percebamos com rigor que a aposta e a divulgação fazem crescer. Trazem responsabilidade e compromisso também e, no limite, as atletas tornam-se melhores e os jogos... atrativos. Hoje emitem-se jogos nos canais generalistas e até já se sabe o nome de algumas jogadoras. Porquê? Porque houve interesse e oportunidade.
Não querendo fazer publicidade ao patrocinador oficial que acompanha o futebol feminino, não poderia dar mais razão ao slogan que escolheram: “O Mundo já está a mudar o Mundo”. E o mundo somos nós, Tomás. Sou eu, que jogo rugby há 15 anos e que me dedico à modalidade para deixar um legado para as novas gerações; é a Joana de 14 anos que treina todas as semanas com as seniores sabendo que não vai jogar no fim-de-semana, porque não tem idade, nem no seu escalão porque no clube não existe, mas ela não desiste; é o irmão que leva os primos e os amigos a experimentar um desporto “diferente”; é o professor que leva uma bola “estranha” para a aula para que todos, rapazes e raparigas, conheçam o rugby; és tu, que podes falar sobre o nosso desporto com câmaras e microfones apontados a saber que te vão ouvir, pensar sobre o que vais dizer e, quem sabe, influenciar alguém.
Espero, honestamente, que o Mundial tenha sido um bom trampolim, não apenas de sonhos, mas de concretização, mudança e evolução. Espero que, tal como referiste, existam “milhares de miúdos” que comecem a jogar rugby por vossa causa. Mas espero também que as crianças, jovens e famílias consigam ver um bocadinho mais além. Pois acredito que um pai ou uma mãe, depois de ouvir as tuas palavras , dificilmente considere que o rugby poderá ser um bom desporto para os seus filhos, pois em tenra idade as diferenças não são gritantes e o que não será benéfico para uma menina, dificilmente será para um menino também.
Apesar das dificuldades, e da pequena janela de oportunidades e recrutamento, o rugby feminino vai continuar a lutar pelo seu lugar, que tem vindo a ganhar cada vez mais visibilidade, tanto nacional como internacionalmente. E ambicionamos, sim, percorrer o caminho do rugby masculino, que para nós têm sido uma referência. Mas precisamos de tempo, ajuda, investimento e, sobretudo, uma boa publicidade!
De capitã para capitão, espero que esta carta tenha sido útil para criar, pelo menos, uma reflexão sobre o impacto que as tua palavras poderão ter no desenvolvimento do rugby.
A todas as meninas e mulheres que queiram experimentar o rugby, a porta está aberta.
Tomás, a ti, fica feito o convite para assistires a mais jogos de rugby feminino.
Daniela Correia