segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A VINGANÇA DOS MESTRES


... e a Bledisloe Cup continua na Nova Zelândia
Meia centena de pontos marcados, trinta-e-um pontos de diferença e seis-dois em ensaios marcados, demonstram a diferença da capacidade de jogo entre AllBlacks e Wallabies. Derrotados na final do Super 15 e com o empate concedido em Sidney, os neozelandeses, como campeões do mundo e primeiros do ranking IRB tinham qualquer coisa para demonstrar. E demonstraram-no sem margem para dúvidas: na conquista e na utilização.
A entrada em cena dos neozelandeses teve um ritmo demolidor - pese o facto de terem sido punidos com penalidade convertida na primeira vez (Conrad Smith) que tocaram na bola - e fez australianos pagarem-no caro ao longo do jogo.
Qualquer das defesas esteve em geral bem, determinada e agressiva, subindo, diminuindo o tempo da decisão, criando uma pressão permanente. Mas os AllBlacks dominam completamente a necessidade de jogarem na cara do adversário - a tal distância de 1 metro a que se devem tomar as decisões - fixando adversários directos e garantindo os espaços de penetração.   
O treinador principal, Steve Hansen, já o tinha dito no início da época internacional: estamos a utilizar mais e melhor o jogo ao pé. E de facto os AllBlacks chutam mais do que as outras equipas como o demonstram as estatísticas - chutaram 23 vezes contra apenas oito dos australianos. É assim natural que tenham menos percentagem de posse de bola do que os adversários mas isso não os torna menos eficazes. Apenas transformaram o velho conceito "se podes correr e passar  não penses em chutar" num outro, de resultado mais objectivo e com base numa regra d'ouro: a utilização da bola serve para criar o maior número de dificuldades ao adversário. O que exige conhecimento do jogo e, para além da técnica necessária ao bem fazer, o domínio da cultura táctica que permita decidir sobre a melhor forma - para cada momento de confrontação - de complicar a vida defensiva adversária. O que, naturalmente, tem uma enorme vantagem: sujeito ao jogo-ao-pé atacante (chamemos-lhe assim por oposição ao jogo ao pé de alívio) o adversário tem que dividir as suas atenções defensivas por um maior, como na velha estória do lençol sempre curto nos pés ou no pescoço, espaço territorial. E esta possível e constante alteração, se permite aliviar pressões, permite ainda - com a boa organização perseguidora que sempre demonstram - conquistar terreno efectivo que, colocando problemas aos defensores, os leva a cometer erros. Tudo junto num benefício que se traduz em pontos.
Alguns dos jogadores - o capitão Richie McCaw, o nº8 Kieran Read e o segundo-centro Conrad Smith - têm sido dados como "acabados" por apressados comentadores. Viu-se o acabamento... os dois terceiras-linhas marcaram 3 ensaios e Smith mostrou-se sempre uma mais valia para os companheiros transportadores da bola: aparece no momento exacto para receber o passe e ainda conquistar terreno, avançando até deixar, se vai ao chão, a bola em perfeitas condições de utilização para companheiros. Um notável jogador que hoje - tendo dividido as preferências com Brian O'Driscoll - é o melhor segundo-centro mundial.
Na ida ao chão enquanto portadores, todos os jogadores AllBlacks mostraram o mesmo entendimento: se soltos, a preocupação de passar a bola a um companheiro que possa continuar o movimento; se presos, a preocupação de mergulhar, qual marcador de ensaio, atirando o corpo para lá da linha dos defensores, dando, desde logo, vantagem ao apoio e dificultando a vida aos defensores que se tocam na bola podem também ser considerados em fora-de-jogo (não há placadores mas pode chegar a haver ruck), ou seja e seguindo a regra que pretendem impor, criando mais uma dificuldade aos defensores. E assim podem jogar ao largo com uma enganadora facilidade que desnorteia as defesas e alarga espaços de passagem.
A panóplia técnico-táctica neozelandesa é imensa e daí o facto de continuarem a ser a melhor equipa do mundo - há quanto tempo são Número Um do ranking IRB? Porque são estes conhecimentos das questões tácticas do jogo e a capacidade - repetida vezes sem conta - técnica dos gestos tornados mais rápidos e mais precisos que faz do XV da Nova Zelândia uma equipa soberba. E que tem traduções evidentes na forma como a equipa actua.
Sempre admirei a capacidade dos jogadores neozelandeses reconhecerem colectivamente uma oportunidade: num repente os jogadores parecem mordidos pelo mesmo bicho e adaptam-se à situação que reconheceram - num gesto de um companheiro, num erro adversário - para conquistar terreno, bola ou pontos. Parece que, comandados por um clique exterior, todos respondem em simultâneo. Com um "mais": cada um responde de forma diferente mas colectivamente articulada para transformar o aparente caos numa força organizada. O que mostra um cuidado especial que vem, com certeza, das etapas de formação.
Ver com atenção o jogo neozelandês permite sempre descobrir qualquer nova exploração mesmo se de procedimentos conhecidos. Desta vez nos alinhamentos: na maior parte dos casos a bola captada nas alturas pelo saltador era, daí, passada imediatamente para as mãos do formação. Com vantagens evidentes: a primeira por não permitir que o cerra-fila e seus últimos companheiros, por falta de tempo, se posicionem para sair sobre as linhas atrasadas atacantes, obrigando-os a correr em perseguição; a segunda porque permite sempre surpreender, utilizando outro tempo de execução como aconteceu nos ensaios de McCaw. 
Se este jogo Nova Zelândia-Austrália só teve como surpresa o volume do resultado, a verdadeira surpresa do fim-de-semana internacional ia sendo a Argentina do nosso Daniel Hourcade que, embora perdendo por 31-33 e tendo tido uma vantagem de 12 pontos aos 55' e ainda de 1 ponto até aos 76', demonstrou a mão-cheia de razões que lhe assistem na preocupação do incremento da velocidade no jogo argentino e nas alterações da composição da equipa. Com objectivos muito elevados para 2019, Hourcade está a mostrar uma interessante via e a conquistar o respeito dos adeptos dos Pumas. A curiosidade pela continuação é muita e os Pumas, ao passaram para um superior patamar de interesse, centram em si os olhares mundiais. O que, para começo, não é nada mau... E a aposta de Hourcade merece.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

INGLATERRA CAMPEÃ MUNDIAL FEMININA


As palavras de balneário ou da capitã devem ser restritas a quem é de cena.
Foto Sky Sports
O fim-de-semana rugbístico tinha começado mal: as enormes expectativas criadas, por causa da formidável final do Super XV, para o Austrália-Nova Zelândia caíram como a água da chuva que molhou a bola e não abriu os espíritos - o jogo esteve muito abaixo da qualidade que os actores prometiam, a Austrália devia ter sabido ganhar (teve tudo para isso, excepto a capacidade de o fazer) e a Nova Zelândia, embora saindo de Sydney sem o recorde das 18 vitórias seguidas, leva a quase certeza, com o resultado de 12-12, de que a Bledisloe Cup vai ficar na ilha da Grande Nuvem Branca. Veremos já no próximo sábado, no neozelandês Eden Park em Auckland.

Valeu então para transformar este mau início num bom final, a final de domingo do Mundial Feminino entre a Inglaterra e o Canadá. Excelente jogo!
De um lado e do outro a predisposição para um combate de oitenta minutos numa luta de não virar a cara e procurar a vitória e o titulo. Venceu a Inglaterra (21-9) e com dois ensaios contra nenhum, não deixou qualquer margem para dúvidas sobre o seu merecimento.
O jogo foi bom e espectacular. Ambas as equipas fizeram uma boa apresentação do domínio dos Princípios Fundamentais do Jogo: em cada utilização, em cada tentativa de recuperação da bola, as diversas jogadoras cumpriam o essencial que carateriza o jogo, numa demonstração permanente de conhecimento táctico e capacidade técnica. É disto - o resto são lérias de quem não sabe para mais - que o jogo de rugby trata: reduzir a complexidade aparente a decisões eficazes por meio da aplicação dos Princípios Fundamentais. O que significa treino, muito treino, organização competitiva, conhecimento do jogo, preparação e inovação programadas, objectivos claros e sentimento colectivo de cada uma se disponibilizar pelas outras. Para que o conjunto de jogadoras possa encontrar-se como equipa num triângulo de propósitos definidos, perspectivas alinhadas e movimentos sincronizados. 
A Inglaterra apresentou-se muito bem - com uma primeira linha de categoria invejável capaz de garantir o pé-da-frente, uma segunda-linha conquistadora e capaz de participar nas diversas fases do jogo, uma terceira-linha móvel e transportadora, uma parelha de médios de decisões acertadas e criadores de surpresa na exploração dos espaços, umas centros - excelente a Emily Scarratt como utilizadora e chutadora - de boa capacidade de circulação e ataque aos intervalos e um três-de-trás capaz de interpretar eficazmente, com adequado movimento pendular, o papel que o visionamento vídeo lhes indicou para impedir qualquer veleidade às atacantes canadianas. E estas capacidades que formam uma equipa de XV de qualidade, notaram-se durante todo o jogo: uma equipa preparada para jogar e ganhar uma final mundial. Num jogo que é uma boa lição sobre o desenvolvimento necessário para atingir níveis competitivos elevados.
O primeiro ensaio inglês foi um portento, um tratado de bem jogar: formação-ordenada no lado direito do campo e saída pela direita - também lado-fechado - a ultrapassar a Linha de Vantagem e a obrigar à intervenção e levar à fixação da terceira-linha canadiana; passagem rápida pelo chão, circulação de bola para a esquerda com perfuração central da segunda-linha Tamara Taylor a desequilibrar a linha defensiva e nova passagem rápida pelo chão com continuidade do movimento no mesmo sentido a alargar o perímetro de jogo de forma a criar os intervalos necessários às perfurações ofensivas. Na sequência dos passes, um excelente cruzamento na ponta da linha a avançar mais metros e retornando de novo para a zona central, novo ruck e bola a sair tão rápido que as defensoras canadianas, apanhadas em contra-pé, aumentaram a inutilidade da sua concentração numérica; bola de novo - segunda vez na mesma jogada - em Taylor para nova perfuração, agora com finta de passe de excelência e fixação perfeita da segunda defensora para entrega em tempo justo à asa Alphonsi que só teve que manobrar um 2x1 para entregar a bola para Danielle Waterman, a defesa, marcar - e ainda com a ponta Merchant para o que desse e viesse. Um excelente ensaio colectivo, com três amplas mudanças de sentido e todas as jogadoras empenhadas, a mostrar a beleza do rugby como jogo de equipa. E a demonstração do merecimento do título de Campeã Mundial.
O Canadá jogou bem mas e apesar da excelência da sua circulação de bola, do ataque aos intervalos e da muito boa coordenação defensiva, perdeu. Por natural falta de experiência.
Não pertencendo a nenhuma das "major" - onde o jogo e as suas tácticas se aprendem quase no berço - às canadianas faltou-lhes a experiência que só muitos jogos neste nível lhes podem dar. Exemplo disso foi o desgaste que a vivacidade das suas jogadoras, na vontade de atacar de qualquer lado, circulando a bola e procurando servir as suas "terríveis" finalizadoras, lhes provocou. Se mais experientes teriam jogado ao pé mais vezes, conquistando terreno e preparando novos ataques em posição territorialmente mais favorável, controlando o ritmo e impondo momentos fortes sobre fraquezas adversárias momentâneas. Ficou-lhes o lugar de finalistas - o que, diga-se, constitui uma verdadeira proeza - e o prémio de Melhor Jogadora do Ano para a sua finalizadora e chutadora - e autora do melhor ensaio do Mundial! - Magali Harvey.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

SURPRESAS EM BONS JOGOS


Se há equipa a quem se tem que tirar o chapéu neste Mundial Feminino de 2014, essa equipa é o Canadá. Depois de um empate com as inglesas - e que pareceu (na impressão imediata) mais consentido que conseguido - as canadianas venceram na meia-final a França que, até então se mostrava como potencial candidata ao título mundial. Apoiando-se numa notável capacidade colectiva de movimento, as canadianas marcaram os primeiros ensaios - e foram dois - que a França sofreu. E que ensaios! 
Se o primeiro consiste numa exploração brilhante pela então formação, Elissa Alarie - antes defesa - que, lendo muito bem a maior preocupação defensiva francesa de "subir e deslizar" para evitar o bom e perigoso jogo das linhas atrasadas canadianas, acelerou por uma brecha que uma finta de passe amplia para porta aberta para quarenta metros de corrida e ensaio transformável, já o segundo é uma obra-prima de coragem, confiança e saber jogar, táctica e tecnicamente. Um tratado de rugby de movimento: formação ordenada francesa a 10/15 metros da linha de ensaio do Canadá, bola conquistada pelas canadianas e de novo Elissa Alarie a ler a possibilidade de criar superioridade numérica ao ver a colocação da ponta defensora para ensaiar ligeira corrida lateral a fixar a abertura Sandrine Agricole, seguida de circulação por passes certeiros cara-a-cara com as defensoras para soltar Magali Harvei - ponta de boa velocidade e também chutadora aos postes - para, num sprint de mais de oitenta metros, bater duas defensoras laterais e ser determinante finalizadora com 13 pontos no jogo. Um formidável ensaio costa-a-costa a marcar a estória destes mundiais. E a confirmar Alarie como a grande aceleradora dos momentos cruciais da utilização da bola. E se a capacidade atacante canadiana ampliou o nível do espectáculo, a sua defesa limitou as opções francesas, obrigando-as a optar por um limitado jogo-ao-pé para o qual havia organização definida e capaz numa demonstração clara das vantagens da boa análise vídeo.
As francesas, puxadas por um público que aos 60' e perdendo por 18-6 aquecia as almas com o cântico de La Marseillaise, marcaram também dois ensaios, ambos por maul penetrante. O primeiro conseguido pela super Nº8, Safy N'Diaye - a tal que na sua ficha de focalização e para não desviar capacidades, tem como lema: "Não te preocupes em passar a bola, preocupa-te em massacrar" - e o segundo, já em cima do final do jogo e que ainda deixou esperanças de um prolongamento nas bancadas do magnífico Jean-Bouin esfumadas na transformação falhada de Agricole.
As canadianas mereceram a vitória - foi a vitória do rugby do movimento, do jogo de passes na procura da criação de intervalos, da confiança nas capacidades globais da equipa numa boa relação táctica conquista/utilização contra o mais limitado conceito - embora com diversos mauls tecnicamente muito bem conseguidos - de imposição da força que a defesa canadiana conseguiu combater até ao limite das suas forças. No fundo o que se viu foi a plenitude do jogo global de um lado contra o limite do maul do outro, numa provável demonstração de que o problema do jogo francês a que temos assistido ultimamente e aos mais diversos níveis é conceptual e não conjuntural. Ou seja, que virá da formação e não do exagero - embora ajudando - de estrangeiros em cada clube. Como curiosidade: o treinador do Canadá, François Ratier, é francês, antigo três-quartos ponta e é treinador no Canadá desde 2003... anos fora suficientes para ter mantido a visão do french flair que procura - vê-se - implementar no jogo canadiano.
Se o Canadá foi a surpresa agradável, a Irlanda foi a surpresa negativa. Vencedoras com grande mérito das poderosíssimas Black Ferns, as Irlandesas foram derrotadas pelas inglesas por um duro 40-7. Duraram meia-hora em que ainda mostraram capacidades para passar por candidatas. Depois acabaram-se ... 
A lição das inglesas estava bem estudada, como contou a sua capitã, Katy McLean: tínhamos de jogar no pé-da-frente e as nossas avançadas conquistaram-nos bolas de grande qualidade para nos permitir aumentar a pressão sobre o campo irlandês. E assim foi: o domínio físico do bloco avançado inglês impôs-se e permitiu quer a possibilidade de definir o alvo atacante que impossibilitaria as temidas combinações irlandesas, quer placagens mais ofensivas que criavam constantes dificuldades à continuidade dos ataques da Irlanda ou ainda construir movimentos ofensivos a atrapalharem cada vez mais uma sempre atrasada defesa irlandesa. Ou seja, o XV da Inglaterra feminino ao dominar, como recomendam os livros, a conquista da Linha de Vantagem, ganhou. E neste controlo procurado desde o balneário, ressaltou a capacidade de condução da bola nas formações-ordenadas da Nº8, Sarah Hunter, que permitiu transformar o avanço conseguido num ponto de desequilíbrio de brutal eficácia. Com 5-1 em ensaios - um deles num tratado táctico ao lançar a bola ao pé para a zona dos postes sempre vazia de defensoras - a Inglaterra mostrou-se claramente superior, podendo ainda contar com o acerto da chutadora aos postes, a 2º centro Emily Sacarrat, muito precisa e com a particularidade de um estilo próprio que, não tardará, irá ter imitadoras e imitadores pelo mundo fora.
No final do jogo e pela forma como ainda se bateram, ficam a lembrança do legado ao rugby irlandês na extraordinária vitória sobre a Nova Zelândia deixado por esta equipa feminina e a mais que meritória passagem à final da Inglaterra.
E a vitória da Irlanda sobre as Blacks Ferns é tão mais espantosa quanto foi ver a real categoria  neozelandesa na vitória (63-7) sobre o País de Gales com 11-1 em diferença de ensaios. Numa demonstração de jogo global, com mudanças constantes de ritmo e direcção, em permanente alternância de jogo-penetrante com jogo-envolvente ou jogo-ao-pé, as neozelandesas deram uma tal demonstração de categoria que a vitória da Irlanda será celebrada por muitos e bons anos. Como ainda hoje se fala da vitória do Munster sobre os All-Blacks acontecida há 36 anos (12-0 em 31/10/1978).

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O MUNDIAL FEMININO


A defesa francesa, Caroline Ladagnous. Foto IRB 
O Mundial feminino de XV que se está a disputar em França - "J'ai deux amours, le Rugby et Paris", é o slogan - tem sido muito interessante de seguir.
Jogos de bom nível e com meia-dúzia de equipas de grande valia e com algumas jogadoras a mostrarem pormenores técnicos ou tácticos a fazer inveja a muito bom jogador.
O jogo no chão parece, qualquer que seja a equipa, pertencer ao seu domínio técnico-táctico, mostrando preocupações sobre as necessidades do movimento avançar ou da libertação rápida da bola: se a bola está lenta, se não há já qualquer avanço, sabem muito bem recorrer ao pick and go para o reiniciar. E se a velocidade do jogo é mais lenta e o jogo ao pé não tem o comprimento do jogo masculino - aqui há a mesma diferença na relação feminino/masculino que existe nos outros desportos - o confronto não perde o carácter de combate pela bola e pelo terreno. E alguns dos movimentos de fixação/envolvimento - cadrage/débordement, como dizem os franceses - quer no um-contra-um na ponta da linha de três-quartos quer na zona central, mostram-nos a vantagem que a recuperação deste gesto técnico - quantas vezes esquecido e abandonado pelo embate - representa. Pode ser que, ao vê-las, os jogadores que pretendam singrar na modalidade se entusiasmem para lhes seguir as pisadas.
Até agora a equipa mais impressionante foi o XV da Irlanda que conseguiu uma inesperada mas justa vitória sobre as tetra-campeãs mundiais, as  Black Ferns da Nova Zelândia. A capacidade de luta - um fighting spirit tão valioso quanto o dos seus companheiros masculinos - traduzida numa capacidade defensiva de grande espírito de organização e confiança colectiva, colocaram problemas suficientes para que as neozelandesas não conseguissem impor o seu jogo. E se a esta capacidade de combate colectivo juntarmos algumas variações tácticas como o recurso a diferentes "aberturas" - a 10, a 12 ou a 15 - conforme ditavam as necessidades do jogo, vemos que estamos em presença de um rugby evoluído, pensado e melhor treinado. Um saber jogar a colocar no bom caminho as que, como dizem, querem chegar ao topo.
Em mais do que uma equipa também se pode perceber a preocupação de atacar "a zona da Dez", procurando, pelo ataque a essa zona tida por ponto fraco, criar os desequilíbrios que, obrigando a equipa adversária a readaptar-se defensivamente, permitem espaços exploráveis para o ataque. E não se pense que o "apoio" é palavra vã - existe uma preocupação absoluta de seguir a líder portadora da bola com grande disponibilidade para continuar o movimento. Curiosamente - descoberta que me surpreendeu - há neste "jogar" uma particularidade feminina, uma forma de ser solidária especial que transforma os seus movimentos, o seu combate ou os seus avanços em momentos de verdadeira emoção. Dentro e fora do campo.
A Inglaterra é também uma equipa forte e com capacidades tácticas suficientes para transformar o jogo das meias-finais com a Irlanda num excelente momento de rugby.  Para além do mais têm na sua centro, Emily Scarratt, a melhor marcadora já com 43 pontos. Por outro lado o Canadá que se qualificou - de facto e numericamente foram as canadianas que "eliminaram" as neozelandesas - ao empatar com a Inglaterra, embora parecendo a mais fraca das quatro finalistas não deixará de obrigar as francesas a demonstrarem todas as suas capacidades. 
A França, a jogar em casa e sempre com grande apoio e a única equipa em prova que não sofreu qualquer ensaio, mostra-se como uma das fortes candidatas ao título mundial. Com um bloco avançado muito forte - a Nº8 é fortíssima e formidável como transportadora, conquistando metros de terreno que permitem ás suas linhas atrasadas - muito móveis e com boa capacidade para procurar a "evasão" em vez do "embate" - atacar o espaço e conquistar terreno. Mas mostraram outras novidades: contra a Austrália e num alinhamento próximo da linha de ensaio utilizaram a "leve" primeiro-centro para captar o lançamento com maior velocidade do que o habitual - pelo menor peso a ser levantado - e com a ajuda ainda da "defesa" encadear um maul que só acabou no ensaio!  Eficazmente diferente e, muito provavelmente, com mais surpresas guardadas.
Os jogos das meias-finais da próxima quarta-feira - Irlanda-Inglaterra e França-Canadá - a serem jogados no parisiense Stade Jean Bouin, merecem ser vistos. O mesmo para o jogo das Black Ferns que, embora lutando apenas pelo quinto lugar, irão mostrar a excelência do seu jogo e a sua capacidade para marcar ensaios - são neste momento a equipa melhor marcadora com 20 ensaios em três jogos. O Livestream do site da IRB transmite-os em directo e serão um bom prelúdio para o Rugby Championship que começa no sábado. 

domingo, 3 de agosto de 2014

THAT'S RUGBY MY FRIENDS

Numa permanente luta por cada centímetro de terreno, as duas equipas da final do Super XV - Waratahs (33)/Crusaders (32) - deram uma lição de bem jogar, bem combater e do entusiasmo que pode ser o rugby dentro e fora do campo. Com 4 ensaios e manutenção da incerteza do resultado até ao último segundo, o jogo do transformado estádio das Olimpíadas de Sidney representa um excelente exemplo do que é um jogo de rugby. Isto é rugby, meus amigos, foi a frase - na sua conhecida versão inglesa - que mais vezes me passou pela cabeça, lembrando-me a visão essencial do conceito: ou vivemos como uma equipa, ou morremos como indivíduos.

Aos 10 minutos os donos da casa australianos já ganhavam por 11-0; ao intervalo por 20-13; aos 49 minutos a inversão com os Saders a vencerem por 23- 20; aos 62 minutos de novo os Tahs na frente com 28-26; aos 76 minutos outra vez os neozelandeses na frente com 32-30; no minuto final os Waratahs - primeiros classificados da fase regular, recorde-se - passam definitivamente para a frente para ganhar o Super XV de 2014 por 33-32 num jogo impressionante de capacidade de utilização das bolas conquistadas por qualquer das equipas.

O jogo de rugby tem como objectivo marcar pontos - o que transforma a conquista da bola, a sua utilização e recuperação nos objectivos tácticos essenciais. Pontos que se tornam eficazes se forem servidos na sua essência pelos princípios fundamentais do jogo: avançar sempre, apoio, continuidade e pressão. A que devemos juntar os parâmetros que marcarão a diferença: velocidade, comunicação, reacção e adaptação. E foi uma impressionante panóplia de utilização destes recursos que se viu durante os oitenta minutos desta final.

E se há força muscular e dimensão física nos jogadores presentes, também pudemos perceber que a questão fundamental para garantir o avanço ou a continuidade do jogo está - como a ciência define - nas habilidades motoras de cada um. E se o físico puro e duro ajuda é a capacidade de antecipar a realização do gesto que faz a diferença.

Ser capaz de decidir e executar no metro de distância ao adversário é a chave para bater defesas cada vez mais organizadas: decidir a distância demasiada - cedo de mais - significa optar por uma solução que já não servirá por ultrapassada pelos movimentos defensivos; decidir no tempo e distância justa é garantir que o movimento tem continuidade e que é possível manter a pressão atacante sobre a defesa, levando-a a abrir os espaços necessários ao avanço do ataque. 

O início dos Tahs foi impressionante: rapidez de conquista, rapidez de passe, mais rápidos e em maior número no chão para garantir a velocidade da sequência, ataques de jogadores lançados aos intervalos defensivos dos Crusaders e a exploração do ponto fraco que se revelou no ponta neozelandês Nadolo. E ganhou também na permanente conquista de terreno indiferentes à posse da bola: evitar dobras defensivas e impedir a formação do apoio atacante foram palavras-de-ordem no campo australiano. E foi no chão que esteve - com 111 favoráveis contra 42 - a chave da vitória ao permitir a pressão da continuidade da posse da bola - 67% contra 33% - traduzido em quase mais 200 metros de terreno em transporte de bola - até estabelecer o domínio sobre o adversário e conseguir ou a ultrapassagem da linha defensiva ou a falta. 

E mesmo assim, os Saders defenderam muito: 176 placagens (21 falhadas) contra 64 (22 falhadas) dos australianos. Mas perderam-se na geografia das faltas: das 10 faltas concedidas, 8 possibilitaram pontapés-aos-postes, sendo 7 convertidas, enquanto que os Tahs, apesar de terem cometido 13 faltas, só fizeram 6 em zona de conversão. E num jogo acabado com 1 ponto de diferença... foi aliás uma falta no último minuto - em grave desconcentração do experimentadíssimo McCaw que, como disse, "se colocou a jeito" (embora seja impossível penalizá-lo por fora-de-jogo por ter sido o placador) - que garantiu a vitória aos Waratahs - "à primeira vista julguei que a bola tinha passado por baixo da barra", contou o capitão vencedor, Michael Hooper.

De facto, qualquer que fosse o lado para o qual a vitória caísse, o vencedor seria justo. Se os Waratahs entraram fortíssimos e conseguiram uma importante diferença no resultado, a reacção dos Crusaders foi de se lhes tirar o chapéu. E a dimensão do jogo que ambas as equipas produziram foi notável, quer em termos de combate, quer em termos do esforço de utilização eficaz das bolas disponíveis. Quantas vezes ultrapassando o limite do risco.

Dois pontos negativos num jogo de elevado nível, repito, e que vale a pena telerever. O primeiro, diz respeito à influência que teve no resultado o substituto de Andrew Ellis, Will Heinz, que cometeu o terrível erro de jogar ao pé, entregando a bola ao adversário, em cima do final do jogo e quando a estratégia recomendava manter a posse - pelas mesmas más razões Portugal deixou, em Santiago de Compostela, a Espanha empatar o jogo em cima da hora e ganhá-lo em Lisboa - proporcionando-lhe posicionar-se no campo para conseguir a falta que lhe deu a vitória. O outro ponto negativo, este de ordem mais geral, foi a evidência de que, com as novas leis, a formação-ordenada favorece o infractor: para além do esforço dispendido num combate de 7 contra 8, a bola conquistada é jogada com os atacantes sobre o pé-de-trás. E tudo isto por causa daquela invenção da autorização imposta pelo árbitro francês, Joel Jütge, chefe da arbitragem da IRB. E se isto não muda, a plataforma de ataque que concentra jogadores e abre intervalos, foi-se... diminuindo a capacidade de ataque das equipas e retirando cada vez mais a possibilidade de expressão atacante que esta final ainda nos pôde mostrar.

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