domingo, 27 de junho de 2021

O MOVIMENTO ATRAVESSOU A MANCHA

 No início da minha ligação ao Rugby, os olhos estavam em cima dos franceses que faziam um jogo espectacular - dos AllBlacks havia poucas notícias e só se sabia que eram muito bons e que tinham uma visão simples e facilmente compreensível do jogo através dos Princípios Fundamentais com que o caracterizaram. E foi com o jogo de então dos franceses que percebi que a criatividade - a manobra - poderia sobrepor-se à força bruta e tirar maiores vantagens (só bastante mais tarde encontrei o conceito de Nun'Alvares Pereira de que se deve "no combate fazer prevalecer a manobra sobre o choque" que sintetiza tudo aquilo que deve ser feito neste jogo de combate que é o Rugby) e que assim seria permitido a portugueses - que não são o povo mais atlético do mundo - serem internacionalmente competitivos.

Com o passar dos anos o jogo francês com o seu "movimento" - de que aprendi os fundamentos com Pierre Villepreux que me abriu as portas ao conhecimento de René Delaplace - foi, infelizmente regredindo e deixou de ser uma referência.

A entrada de inúmeros jogadores vindos de outros países, de outras culturas desportivas e rugbísticas e que não tinham língua comum de entendimento terá dado nisto: o elemento de máxima comunhão do jogo, como acontece sempre que não há interpenetração cultural,  era o seu aspecto mais simplório e de mais fácil compreensão: o choque, a colisão, o tentar vencer a organização defensiva não pelo movimento das combinações mas sim pela criação de desequilíbrios conseguidos pelo confronto directo das forças. Enfim, a aculturação do jogo traduziu-se numa regressão do estilo de jogo do hexágono que deixou de ser atractivo e de iluminar os caminhos do progresso da modalidade. E o jogo aproximou-se da memória que existia dos traços culturais das velhas lutas entre povoações, numa espécie de vale-tudo para colocarem a bexiga de porco na praça dos contrários.

Disto tudo me lembrei ao ver, neste fim‑de‑semana, as finais do campeonato francês — entre o Toulouse e o La Rochelle — e do campeonato inglês, entre o Exeter Chiefs — campeão em título — e o Harlequins. Porque a diferença entre a colisão francesa permanente e as manobras em movimento inglesas foram como do dia para a noite. Entre o tédio e o entretenimento. 

No  jogo entre os finalistas franceses — e também europeus —predominou a colisão na procura da ultrapassagem da linha-de-vantagem através da força e a consequente demora reequilibradora da reciclagem da bola — sabe-se que tudo o que seja mais demorado do que 2 segundos para libertação da bola significa a possibilidade de reorganização defensiva, resultando daí um ataque em inferioridade numérica, aperta da vantagem dum eventual desequilíbrio criado ea consequente necessidade de voltar à primeira-forma, numa repetição constante sem surpresa e ou criatividade.


No jogo inglês — para espanto daqueles que não tenham seguido as transformações operadas neste tempo de pandemia — a manobra era a constante bem como a manutenção do movimento da bola com libertações da bola — pela excelência da posição corporal quando obrigados a ir ao chão — muito rápida e que permitiam sempre uma continuidade que obrigava a defesa ao difícil desempenho de ter que se organizar permanentemente em movimento — "scramble defense" como gostam de lhe chamar a lembrar a ordem de levantar voo imediato, nos aeródromos militares ingleses das esquadrilhas que se reorganizariam em formação de combate já no ar e que constituía a primeira exigência de defesa contra ataques alemães na II Guerra Mundial.  

Onze ensaios numa final fazem-na memorável — imagino o gozo dos que tiveram a sorte de assistirem ao vivo... — e mostram que o Rugby não tem que ser o jogo sensaborão e sem riscos que vamos vendo cada vez mais espalhado por esse mundo fora — também vi um insuportável Geórgia-Holanda...

O único interesse que encontrei na final francesa — que teve o dobro dos pontapés do jogo inglês — foi o jogo-ao-pé de Thomas Ramos que, desta vez e por lesão de Ntamack, jogou como médio-de-abertura e que deu uma lição de inteligência táctica de utilização do pontapé (veja-se a diferença, num jogo e noutro, do número de pontapés efectuados em jogo, bem como o número de alinhamentos em cada jogo) quer no jogo em pressão, quer em ocupação de terreno A qualidade do jogo-ao-pé de Ramos foi tal que o jogo deveria pertencer à biblioteca, servindo como aula, a todos, treinadores incluídos, que queiram ocupar o lugar "10" de uma equipa — os nossos internacionais Jerónimo Portela e Jorge Abecasis fariam bem em aproveitar algum do seu tempo para estudarem as decisões e as formas do jogo de Ramos nesta final. Uma verdadeira lição! Que exige muito conhecimento do jogo para permitir as leituras de que deu mostra.

E se os franceses fizeram mais placagens, os ingleses falharam apenas metade para um mesmo número de ultrapassagens da linha-de-vantagem. O que significa que o elevado número de ensaios não aconteceu por falhas da defesa mas porque houve as manobras de continuidade suficientes para desarticularem as defesas.  E o número de turnovers conseguidos — 23 contra 6 — mostra claramente o diferente tipo de jogo das duas finais: a colisão que leva o corpo ao chão nem sempre nas melhores condições de manutenção da posse e do tempo de libertação e a escolha do tempo de contacto com a posição adequada para a libertação imediata da bola — entrar de frente leva ao primeiro tipo de contacto, avançar o ombro contrário ao do transporte da bola leva ao segundo. Uma diferença que faz toda a diferença entre paragens e constantes recomeços de mais do mesmo e a destabilizadora continuidade do movimento, normalmente utilizada em sequência do mesmo sentido mas com todas, dependendo da leitura, as possibilidades de contrariar o posicionamento adversário mais organizado ou mais forte.

Pelas duas finais vistas e que correspondem ao já visto anteriormente nas meias-finais dos dois campeonatos, parece que os conceitos do Rugby de Movimento atravessaram a Mancha e começam a desenvolver-se. O que significará, se esta transformação for uma realidade, que — e porque a cultura rugbística tem aí um enorme berço — que o Rugby inglês, fazendo jus ao seu enorme número de jogadores, pode tornar-se uma potência capaz de ombrear com os AllBlacks. Há quem se lembre do que este tipo de jogo de movimento fez de um país de pouca riqueza e reduzida população como o País de Gales nos anos 70. Alguém recordou a lição e está — para bem e gozo de todos nós espectadores — a utilizá-la. Espera-se que para bem do Mundial de 2023...   


quarta-feira, 2 de junho de 2021

EMOÇÃO SUFICIENTE PARA POUCO JOGO

A aridez das dezenas de milhares de cadeiras vazias nas bancadas do Estádio Nacional não prometia nada de desportivamente excitante. E assim foi, o jogo da final da Divisão de Honra do Campeonato Nacional de Rugby não passou de emotivo. Teve de facto emoção, principalmente para os adeptos das equipas em confronto, mas foi técnica e tacticamente fraco. Com poucas soluções ou momentos interessantes se exceptuarmos a bela combinação de movimentos do 2º ensaio do Técnico.

O Direito, primeiro classificado da fase regular, mostrou-se incapaz de transformar em assertivo domínio as bolas disponíveis: bolas caídas, passes incapazes e um jogo ao pé de entrega e muito pouco perturbador do “três-de-trás” adversário. A exploração dos corredores laterias foi nula por inépcia de uma linha de três-quartos que, não atacando em tempo útil a linha-de-vantagem, preferiu a comodidade de jogar “lá atrás”…

… e obviamente que a defesa do Técnico agradeceu esta possibilidade de defender — e a sua defesa está suficientemente bem organizada para não ser ultrapassada por meros passes laterais que ignoram a verticalização — em cima do “pé da frente”.



No fundo, as equipas jogaram de acordo com as tendências dos ensaios marcados e sofridos —  verificar esta tendência de ensaios, pela capacidade transformadora de resultados que os pontos de jogo que cada um permite (um mínimo de 5 e um máximo de 7), dá uma ideia interessante sobre as capacidades quantitativas de cada equipa — que vinham a mostrar no desenvolvimento da fase regular.  


Direito, com tendência negativa quer em ensaios marcados quer em ensaios sofridos — aqui uma enorme queda demonstrativa de incapacidades defensivas, mostrava-se tendencialmente e neste final de época em queda na sua competência competitiva.     


O Técnico embora fosse perdendo também capacidades atacantes, demonstrou sustentadas melhorias defensivas bem patentes no único ensaio sofrido durante a final.


Um factor que distinguiu absolutamente as equipas foi a capacidade da rapidez de reciclagem da bola onde o Técnico deu uma clara demonstração do conhecimento táctico das suas vantagens — se bola rápida, os defensores no ponto de quebra são colocados fora do jogo, sendo assim retirado tempo de reorganização à defesa; se a bola é lenta, existe uma maioria de jogadores atacantes no ponto de quebra, os defensores, libertos do ponto de quebra, organizam-se e o ataque faz-se em inferioridade numérica. A primeira decisão faz-se então a partir dessa velocidade de reciclagem: se rápida, jogo largo de passes a atacar o primeiro intervalo encontrado; se lenta, reinicia-se o movimento com jogo curto e de contacto/colisão para voltar a conter defensores. A esta capacidade técnico-táctica demonstrada pelo Técnico, respondeu Direito com uma lentidão exasperante que não lhe permitiu, nos seus melhores momentos de pressão “em cima” da linha de ensaio adversária, ser eficaz e transformar em pontos o território conquistado.


E o jogo foi isto: um mais consistente e adulto Técnico a merecer a vitória sobre um Direito, mais inexperiente e que terá mostrado necessidade de um maior crescimento e conhecimento táctico do jogo.


Numa época muito perturbada com a pandemia, o Técnico mostrou, nesta parte final do campeonato, que conseguiu, como mostra a sequência VDVDVVVVVVVV de resultados, adaptar-se às dificuldades, desenvolvendo as capacidades técnico-tácticas da equipa e  terminando a época com um merecido triunfo.

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