quarta-feira, 17 de outubro de 2012

O COSTUME E O CONTEXTO

No último África do Sul-Austrália do Four Nations os últimos minutos foram jogados com formações-ordenadas sem oposição. O árbitro, o irlandês Alain Rolland, considerou que, tendo já havido sete substituições, não poderia haver nenhuma mais. Mesmo tratando-se de uma substituição de um jogador da primeira-linha.

A IRB veio posteriormente, embora disfarçando ao nomear a equipa de arbitragem, considerar que o árbitro - um dos mais categorizados internacionalmente - se tinha equivocado e que deveria ter aplicado a Excepção 2 da Lei 3.12 e não a Lei 3.4 como referiu, argumentando com a já realização de sete substituições.

Fazendo sentido que seja como afirma a IRB - o espírito do jogo está em coerência com esta interpretação - não me parece que a letra da lei permita a sua aplicação. E penso portanto que o árbitro Rollands tinha razão na decisão que tomou.

O sucedido tem muito a ver com um problema tradicional do rugby: sendo um jogo dominado pelo espírito anglo-saxónico e pelo seu tradicional fundamento no costume, cria enormes problemas a quem tem que reger o jogo pela interpretação integrada das leis. Sempre tive discussões com britânicos - árbitros ou antigos jogadores (a mais recente foi com Bill Beaumont) - na interpretação das situações de jogo: aquilo é falta, dizem; pois, mas não é isso que dizem as Leis do Jogo, respondo - e, quantas vezes, mostrando, no telemóvel, as leis em versão inglesa.

Existe um óbvio problema nas interpretações e no encontro de duas culturas que têm prismas diferentes de analisar o mundo. E, com a tradição anglo-saxónica que a reveste, a IRB tem uma enorme dificuldade em lidar com a globalização da modalidade: esquecendo que o Outro - que não conhece o rugby desde os finais do século dezanove - só pode compreender o jogo e as suas leis pela clareza da sua exposição e articulação.

É a Lei 3 - já de si de redacção bastante confusa - que se aplica no caso vertente. E o seu ponto 3.4 diz que, sendo o limite de sete jogadores substitutos/suplentes, uma equipa pode substituir dois jogadores da primeira-linha e cinco dos restantes - e a única excepção que preconiza, 3.14, não tem interesse para o caso. Continuámos assim no domínio do número sete para substituições.

Diz a IRB que deveria ter sido aplicada a Excepção 2 do ponto 3.12. Não percebo bem como. Nem a Lei 3.12, nem a Excepção 2 excepcionam o limite da substituição de sete jogadores estabelecido no ponto 3.4. E como para nós - continental poor fellows - o articulado não deve ser interpretado desincerido do seu contexto, a interpretação da IRB parece, julgo mesmo que será, abusiva. Porque a IRB valeu-se de um conceito não escrito e com ele fez regra. Impondo o seu poder. E desvalorizando a decisão de um árbitro capaz.

Porque não alterando a redacção do ponto 3.4, a única interpretação possível no contexto da Lei 3 - Número de Jogadores - A Equipa é a de que podem, tratando-se de primeiras-linhas e quando lesionados, ser substituídos por jogadores já anteriormente substituídos por razões tácticas até ao total dos dois referidos como limite - a Clarification 5-2009 sobre esta matéria nada acrescenta.

Com este comunicado da IRB fica a perceber-se que entendem como possível a existência, no somatório de três tácticas e mais três por lesão, de seis substituições na primeira-linha. Será? Mas onde está escrito que o limite de substituições na primeira-linha pode ser superior ás duas que a Lei 3.4 limita ou ás três que a Lei 3.14 permite quando houver 23 jogadores? Onde está a coerência do articulado?

Não faltam - basta ler as Clarifications in Law - zonas cinzentas nas Leis do Jogo. Demasiadas até para a pretendida extensão do jogo de XV. Umas serão assim, porque a tradição do hábito faz delas uma prática interpretativa que julgam não obrigar á sua passagem a escrita clara e articulada; outras, porque parecem ser escritas por diferentes pessoas que nunca se encontraram para juntar as partes. Em qualquer das situações salva-se o jogo pela imposição da tradição interpretativa que permite guardar no bolso o livro das Leis do Jogo e viver do costume. Até que a globalização do jogo e o seu crescimento exijam a abertura da quinta à transparência universal. Popularizando a extensão da percepção do jogo pela simplicidade das suas regras a populações de cultura não britânica.


Lei 3 - NÚMERO DE JOGADORES: A EQUIPA
Definições
[…]
Substituto: um jogador que substitui um companheiro de equipa lesionado.
Suplente: um jogador que substitui um companheiro de equipa por opção táctica

Lei 3.4 JOGADORES NOMEADOS COMO SUBSTITUTOS/SUPLENTES
Em jogos internacionais uma Federação pode designar até sete substitutos/suplentes
[...]
Uma equipa pode substituir até dois jogadores da primeira-linha (subordinado à Lei 3.14 em que podem ser três) e até cinco dos outros jogadores. As substituições só podem fazer-se quando a bola estiver morta e com autorização do árbitro.

Lei 3.12 JOGADORES SUBSTITUÍDOS QUE VOLTAM AO JOGO
(a) se um jogador é substituído, esse jogador não pode voltar ao jogo, nem mesmo para substituir um jogador lesionado.
Excepção 1: um jogador que tenha sido substituído por razões tácticas pode substituir um jogador com uma ferida aberta ou sangrenta.
Excepção 2: um jogador que tenha sido substituído por razões tácticas pode substituir um jogador da primeira-linha lesionado, suspenso temporariamente ou expulso, excepto se o árbitro, antes da situação que provocou a saída de campo do referido primeira-linha, tiver ordenado formações-ordenadas sem oposição e a sua equipa tiver já utilizado todos os seus substitutos e suplentes autorizados.
(b) [...]


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