quarta-feira, 23 de abril de 2014

O QUE QUEREMOS?

Tenho enorme dificuldade em perceber o que quer - que futuro pretende - a comunidade rugbística portuguesa. Formada por diferentes interesses, perspectivas e objectivos, a comunidade rugbística portuguesa tem em comum duas coisas: o gosto pela bola oval e a coligação negativa de interesses enquanto processo de oposição conjunto sem capacidade de solução comum. Com ambos os elementos a uni-los, os membros da comunidade rugbística, fugindo ao exercício da democracia inteligente, pretendem-se fiéis depositários da verdadeira identidade do rugby e do seu carácter. Procurando impôr a sua visão sem cuidar das vantagens e inconvenientes na relação com o sistema mais amplo que representa o mundo da modalidade.
No entanto, se o mundo em geral mudou, o mundo rugbístico mudou também e muito. O que obriga a uma adaptação como factor essencial de sobrevivência. 
Perderam-se os tempos clássicos de uma modalidade que, sem descurar vitórias e derrotas, se mostrava como um combate entre tropas de uns e de outros para terminar num social encontro de ambos os lados que, entre cervejas, comentavam as peripécias dos seus rapazes dentro do terreno-de-jogo. Era o reinado do famoso "terceiro-tempo" que deixou as marcas que caracterizam a visão ética do jogo. Era o tempo da extensão do rugby social a todos cantos da bola oval entrecortados por um ou outro jogo internacional memorável e cujas referências chegam até hoje.
Tudo foi mudando, tudo mudou. O lado da componente desportiva de rendimento foi crescendo e dos "magníficos dias" ficou um conjunto de valores que caracterizam a modalidade mas desenvolveu-se, com a passagem de um "amateurisme marron" - como era designado por franceses - para um profissionalismo claro e regulado, a componente rendimento, a importância do resultado em competições cada vez mais constantes, apertadas, atractivas e espectaculares. Conseguindo assim, directa ou indirectamente, as receitas necessárias ao pagamento de actores e encenadores.
Neste mundo transformado, nem todos conseguem atingir os níveis estabelecidos pelos mais avançados. E muitos daqueles que para lá tentam caminhar nem sempre o conseguem fazer nos mesmos prazos ou pelos mesmos percursos. Mas, o sinal dos tempos impõe-no, igualmente focados num mesmo objectivo: conseguir criar condições para que as suas equipas representativas obtenham resultados de bom nível internacional. E assim se alteraram as responsabilidades das organizações federativas numa evolução desportiva que passou dos aristocráticos "sportsmen" - os únicos que então dispunham de tempo livre - para um acesso generalizado e que, por via disso e do espectáculo que passou a proporcionar, exigiu reorganizações e adaptações às novas exigências de competitividade e resultados.
É isso que se passa também em Portugal ao procurar criar condições que permitam a obtenção de resultados internacionais de qualidade. 
E porque é essencial enfrentar essa realidade? Porque sem resultados internacionais qualificados não haverá dinheiro que sustente o rugby nacional: diminuirão os subsídios estatais ou da IRB e não haverá patrocinadores interessados se nos deixarmos reduzir a uma expressão sem notória dimensão ou relevância.
Daí a tremenda luta que o rugby português enfrenta no plano internacional, jogando com cada vez melhor preparados e mais profissionalizados adversários que colocam os nossos desafios em níveis muito elevados a que é necessário saber dar respostas através da melhor preparação competitiva.
Até agora Portugal tem, com sucessivas adaptações, conseguido manter-se num nível internacional reconhecidamente qualificado: pertença ao primeiro quarto - ultrapassando mais de setenta países - do ranking da International Board no rugby de XV; membro efectivo do grupo de quinze países da Sevens World Series. 
Mas os tempos estão cada vez mais difíceis e exigem atitudes cada vez mais adequadas ao nível do Alto Rendimento Desportivo - as equipas dos nossos adversários, seja no Union, seja no Sevens, promovem cada vez melhores programas de desenvolvimento competitivo. E quem não seguir a velocidade e souber integrá-la no seu cruzeiro, perderá o combóio e ficará no deserto da estação.
O desenvolvimento que o rugby conheceu em Portugal, a sua transformação, mostram-no muito diferente daquele que conheci, há meio século atrás, quando o adoptei como meu desporto. Vivi, como jogador, algumas mudanças e como treinador de clubes e de selecções vivi mudanças maiores que transportaram o "meu" jogo para níveis de rendimento desportivo que, sem perder a ética caracterizadora dos "magníficos dias", o transformaram na expressão excelente de um jogo colectivo de combate onde à força e velocidade se juntam técnicas de passe, de pontapé ou de finta em momentos que exigem a coragem de uma placagem, a inteligência de uma decisão, o empenho de uma conquista, o domínio de um território.
Chegado até aqui não gostaria de voltar ao retrocesso de um jogo de mero entretenimento social intervalado por um ou outro jogo julgado memorável a que, infelizmente, a velocidade da memória actual já não atribuiria qualquer estatuto relevante. E nós portugueses estamos, verdadeiramente, em risco de o ver acontecer...
Evitá-lo, se pretendemos mantermo-nos em consonância com o mundo que nos rodeia, é uma obrigação que se exige à comunidade rugbística nacional. Como? Mostrando-se capaz de interpretar a voz do tempo e perceber que os interesses de continuação na área do, digamos assim, "rugby social"  - o que pretende mais o divertimento do jogo do que as elevadas responsabilidades das exigências do treino - não é incompatível com o necessário e interessante mundo do Alto Rendimento. Apenas não são misturáveis no mesmo tempo e espaço e necessitam de campos distintos de expressão para que as adaptações exigíveis pelo Alto Rendimento não se arrastem com o demasiado peso de outras intensões. E nesta época de crise é essencial que a comunidade rugbística o compreenda e, rapidamente, aja em conformidade: separando o que é diferente e permitindo a expressão de cada uma das componentes no seu campo e espaço próprios.
Porque, de outro modo, voltaremos a um rugby assim-assim em torno dos eternos e consolidados oito clubes de sempre. E todo o esforço dos últimos anos como a formação de jogadores, criação de novos clubes, construção de novos campos, ampliação do número de treinadores credenciados, alargamento da modalidade ao espaço feminino irá, ao sopro da nossa incompreensão ou inércia, desabar como um castelo de cartas... ou como a casa dos três porquinhos.

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