sexta-feira, 15 de agosto de 2014

SURPRESAS EM BONS JOGOS


Se há equipa a quem se tem que tirar o chapéu neste Mundial Feminino de 2014, essa equipa é o Canadá. Depois de um empate com as inglesas - e que pareceu (na impressão imediata) mais consentido que conseguido - as canadianas venceram na meia-final a França que, até então se mostrava como potencial candidata ao título mundial. Apoiando-se numa notável capacidade colectiva de movimento, as canadianas marcaram os primeiros ensaios - e foram dois - que a França sofreu. E que ensaios! 
Se o primeiro consiste numa exploração brilhante pela então formação, Elissa Alarie - antes defesa - que, lendo muito bem a maior preocupação defensiva francesa de "subir e deslizar" para evitar o bom e perigoso jogo das linhas atrasadas canadianas, acelerou por uma brecha que uma finta de passe amplia para porta aberta para quarenta metros de corrida e ensaio transformável, já o segundo é uma obra-prima de coragem, confiança e saber jogar, táctica e tecnicamente. Um tratado de rugby de movimento: formação ordenada francesa a 10/15 metros da linha de ensaio do Canadá, bola conquistada pelas canadianas e de novo Elissa Alarie a ler a possibilidade de criar superioridade numérica ao ver a colocação da ponta defensora para ensaiar ligeira corrida lateral a fixar a abertura Sandrine Agricole, seguida de circulação por passes certeiros cara-a-cara com as defensoras para soltar Magali Harvei - ponta de boa velocidade e também chutadora aos postes - para, num sprint de mais de oitenta metros, bater duas defensoras laterais e ser determinante finalizadora com 13 pontos no jogo. Um formidável ensaio costa-a-costa a marcar a estória destes mundiais. E a confirmar Alarie como a grande aceleradora dos momentos cruciais da utilização da bola. E se a capacidade atacante canadiana ampliou o nível do espectáculo, a sua defesa limitou as opções francesas, obrigando-as a optar por um limitado jogo-ao-pé para o qual havia organização definida e capaz numa demonstração clara das vantagens da boa análise vídeo.
As francesas, puxadas por um público que aos 60' e perdendo por 18-6 aquecia as almas com o cântico de La Marseillaise, marcaram também dois ensaios, ambos por maul penetrante. O primeiro conseguido pela super Nº8, Safy N'Diaye - a tal que na sua ficha de focalização e para não desviar capacidades, tem como lema: "Não te preocupes em passar a bola, preocupa-te em massacrar" - e o segundo, já em cima do final do jogo e que ainda deixou esperanças de um prolongamento nas bancadas do magnífico Jean-Bouin esfumadas na transformação falhada de Agricole.
As canadianas mereceram a vitória - foi a vitória do rugby do movimento, do jogo de passes na procura da criação de intervalos, da confiança nas capacidades globais da equipa numa boa relação táctica conquista/utilização contra o mais limitado conceito - embora com diversos mauls tecnicamente muito bem conseguidos - de imposição da força que a defesa canadiana conseguiu combater até ao limite das suas forças. No fundo o que se viu foi a plenitude do jogo global de um lado contra o limite do maul do outro, numa provável demonstração de que o problema do jogo francês a que temos assistido ultimamente e aos mais diversos níveis é conceptual e não conjuntural. Ou seja, que virá da formação e não do exagero - embora ajudando - de estrangeiros em cada clube. Como curiosidade: o treinador do Canadá, François Ratier, é francês, antigo três-quartos ponta e é treinador no Canadá desde 2003... anos fora suficientes para ter mantido a visão do french flair que procura - vê-se - implementar no jogo canadiano.
Se o Canadá foi a surpresa agradável, a Irlanda foi a surpresa negativa. Vencedoras com grande mérito das poderosíssimas Black Ferns, as Irlandesas foram derrotadas pelas inglesas por um duro 40-7. Duraram meia-hora em que ainda mostraram capacidades para passar por candidatas. Depois acabaram-se ... 
A lição das inglesas estava bem estudada, como contou a sua capitã, Katy McLean: tínhamos de jogar no pé-da-frente e as nossas avançadas conquistaram-nos bolas de grande qualidade para nos permitir aumentar a pressão sobre o campo irlandês. E assim foi: o domínio físico do bloco avançado inglês impôs-se e permitiu quer a possibilidade de definir o alvo atacante que impossibilitaria as temidas combinações irlandesas, quer placagens mais ofensivas que criavam constantes dificuldades à continuidade dos ataques da Irlanda ou ainda construir movimentos ofensivos a atrapalharem cada vez mais uma sempre atrasada defesa irlandesa. Ou seja, o XV da Inglaterra feminino ao dominar, como recomendam os livros, a conquista da Linha de Vantagem, ganhou. E neste controlo procurado desde o balneário, ressaltou a capacidade de condução da bola nas formações-ordenadas da Nº8, Sarah Hunter, que permitiu transformar o avanço conseguido num ponto de desequilíbrio de brutal eficácia. Com 5-1 em ensaios - um deles num tratado táctico ao lançar a bola ao pé para a zona dos postes sempre vazia de defensoras - a Inglaterra mostrou-se claramente superior, podendo ainda contar com o acerto da chutadora aos postes, a 2º centro Emily Sacarrat, muito precisa e com a particularidade de um estilo próprio que, não tardará, irá ter imitadoras e imitadores pelo mundo fora.
No final do jogo e pela forma como ainda se bateram, ficam a lembrança do legado ao rugby irlandês na extraordinária vitória sobre a Nova Zelândia deixado por esta equipa feminina e a mais que meritória passagem à final da Inglaterra.
E a vitória da Irlanda sobre as Blacks Ferns é tão mais espantosa quanto foi ver a real categoria  neozelandesa na vitória (63-7) sobre o País de Gales com 11-1 em diferença de ensaios. Numa demonstração de jogo global, com mudanças constantes de ritmo e direcção, em permanente alternância de jogo-penetrante com jogo-envolvente ou jogo-ao-pé, as neozelandesas deram uma tal demonstração de categoria que a vitória da Irlanda será celebrada por muitos e bons anos. Como ainda hoje se fala da vitória do Munster sobre os All-Blacks acontecida há 36 anos (12-0 em 31/10/1978).

Arquivo do blogue

Quem sou

Seguidores