Os jogos entre Portugal e Espanha são sempre, dentro do especial que são já os jogos internacionais de rugby, muito especiais. Porque somos vizinhos, porque nos medimos uns aos outros, porque nos lembra más vizinhanças com feitos e desgraças de outros tempos. Mas a memória histórica recente - no resultado de jogos anteriores - e a memória antiga - a das batalhas e das lutas pela independência - estão sempre presentes. E por isso é natural que Aljubarrota - feito único na vontade de independência - surja na conversa. Até porque gostamos de saborear essa vitória conseguida em inferioridade numérica - com inteligência, destemor e vontade.
Também eu, enquanto treinador da selecção nacional, usei a imagem de Aljubarrota para, em linguagem de balneário, motivar os internacionais portugueses.
E faz sentido utilizar Aljubarrota porque é uma boa imagem de uma estratégia inteligente recheada de tácticas eficazes que levaram ao objectivo final da vitória.
Num tempo em que se entende, cada vez mais, a estratégia como uma articulação em rede em vez de uma sequência de nós, para mim, o mais interessante de Aljubarrota é a proximidade a rede que a montagem inteligente da estratégia proporcionou na relação com as tácticas utilizadas. O que é, desde logo, uma boa lição para um jogo colectivo de combate que é organizado para a conquista de terreno.
Para além da boa memória histórica para que serve a Batalha Real de Aljubarrota num jogo de rugby entre Portugal e a Espanha?
Em Aljubarrota tudo terá começado, ao contrário do que era habitual e que correspondia ao código da cavalaria da época, com um convénio onde se decidiu "não fazer prisioneiros" - a inferioridade numérica não permitia "gastar" homens na deslocação e guarda da nobreza adversária capturada. A isto se seguiram diversas manobras e uso de terrenos - as "covas de lobo" e o encaixe das lanças no chão - para impedir uma frente de ataque alargada à cavalaria adversária. Entre espaço estreito, espécie de cavalo à vez, e a vontade de não não ser atrapalhado com tarefas secundárias, pode pensar-se no susto - pelo aumento exponencial do risco (uma coisa é passar uns anos de cativeiro até que o resgate seja pago, outra muito diferente é ver a morte diante dos olhos) - que os nobres da cavalaria inimiga terão enfrentado com o consequente aumento da pressão que, naturalmente, terá desorganizado as forças do enorme e poderoso inimigo, forças essas a que, entretanto, se juntava a brutalidade massiva do fogo aéreo de flechas e virotões que mais ainda faziam para a separação e desarticulação dos sectores do exército espanhol.
Valeu-nos ainda neste heróico combate o facto do Mestre de Alcântara, que no terreno comandava a ala direita do exército espanhol, nunca ter lido SunTzu. Que, à falta de melhor táctica, decidiu cercar - sem deixar qualquer hipótese de fuga como manda o mestre chinês - a carriagem real onde estaria D. João. Cercados, sem hipótese de fuga, só havia uma forma: combater de tal maneira por cada palmo de terreno e de corpo que o inimigo, por impotência, desistisse. E assim se venceu, epicamente, em inferioridade numérica.
De que nos pode servir a inteligência táctico-estratégica de Aljubarrota para este jogo contra a Espanha para além de mostrar que com inteligência, criatividade, fazendo uso de experiências passadas e com muita coragem é possível vencer mesmo em condições de aparente fragilidade? Desde logo por já aí se mostrar que a continuidade do movimento - a rede - é mais eficaz que a sequência permanente de reinício - os nós. A que a impossibilidade de "parar para pensar", se somarmos a pressão da execução em velocidade, dará as vantagens necessárias à vitória. E se ainda dispusermos de usos de bola que possam surpreender pela criatividade colocada na sua execução, a tarefa de marcar pontos pode ser facilitada.
Mas desenganemo-nos: a equipa espanhola vai bater-se até ao limite das suas forças. Para o que, para que se imponham, os jogadores portugueses vão necessitar do exemplo combativo dos sitiados da carriagem real, realizando as placagens ofensivas que não "fazem prisioneiros" num constante uso do instinto do predador - o killer instinct - que no desporto de Alto Rendimento é apanágio dos vencedores.
A experiência dos 13 jogos internacionais já realizados esta época tem de vir ao de cima e ser factor de vitória ao permitir o à-vontade para correr os riscos necessários. De forma inteligente e combativa. Como em Aljubarrota...
... e para deixar nas nossas memórias o último jogo internacional do António Aguilar e do João Correia.
(Publicado 14 de Março no Público/P3/Râguebi)