sexta-feira, 10 de novembro de 2017

ELOGIO DA FORMAÇÃO NEOZELANDESA


O Barbarians-All Blacks traz-nos sempre à memória o ensaio - O ENSAIO - marcado no jogo de 1973 e que muitos consideram o melhor de sempre: Phil Bennett, estreante nestas andanças, apanhou uma bola chutada do campo neozelandês e que viu saltar quatro vezes e a cerca de 5 metros dos seus postes, lembrando o conselho de Carwyn James antes do jogo - Vai lá para dentro e joga como sabes, joga de acordo com o que tiveres na frente como fazes no clube - fintou 4 all-blacks e passou longo para JPR Williams que, "engravatado" pelo neozelandês Bryan Williams, ainda assim passou a bola a John Pulin que a passou a John Dawes que a entregou a Tommy David que, como bom terceira-linha, garantia o apoio interior e que, naquilo que hoje se chama um off-load, obrigou Derek Quinell a uma difícil recepção - e já estavam ultrapassados os 10 metros do campo adversário... - e que, procurando o exterior para entregar ao  ponta Bevan, viu aparecer a seta Gareth Edwards - que lhe berrava em galês "dá-me!, dá-me!" - para correr toda a área dos 22 e mergulhar na área de ensaio. Soberbo! Foram 95 metros de avanço, apoio, continuidade e pressão - pelo número de jogadores disponíveis numa constante organização de losangos para opção de passes. Sete jogadores envolvidos (6 galeses e um inglês) para 24 segundos de magia de um Rugby que vale a pena ver vezes sem conta. Inesquecível! Um tratado, uma maravilha que nos faz sempre pensar que deveríamos, todos, jogar assim.

Nessa altura, já lá vão 44 anos, a superioridade técnica e táctica do Norte - principalmente através dos jogadores que constituíram a então notabilíssima equipa do País de Gales - era evidente. Phil Bennett ao contar hoje porque decidiu lançar o contra-ataque mostra à evidência essa superioridade táctica: Poderia ter chutado calmamente para fora mas pensei "Quando é que os adversários relaxam mais? é quando nos obrigam a recuar para a nossa linha de ensaio e estão a pensar para eles próprios "Eles vão chutar para fora.". E ao aproveitar a oportunidade, impondo a sua tremenda técnica de side-step, iniciou o melhor ensaio de sempre. E os companheiros, em simultâneo e como contam hoje, pensaram: "ele não vai chutar, ele vai atacar - tenho que me recolocar!". E assim fizeram para garantir a continuidade do movimento de um jogo memorável com vitória, por 23-11, dos Barbarians.

Este último Barbarians-All Blacks do sábado passado mostrou-nos o contrário. Mostrou que a qualidade do jogo na Nova Zelândia é muito superior à dos outros países. O conhecimento táctico do jogo é notável, simultâneo - todos lêem a mesma coisa ao mesmo tempo - e permite a percepção colectiva da oportunidade.

No jogo, que os All-Blacks venceram por 31-22, jogaram, dos 46 jogadores que formaram as duas equipas, 33 (23+10) jogadores neozelandeses a que se juntou Kieran Read como "garrafa de àgua". O que representa uma demonstração da qualidade da formação e competição interna neozelandesa.

Baseada no passar e receber e no conhecimento do jogo - Game Sense é o recurso do ensinamento formativo - consideram que o ensaio é o objectivo principal, a razão do uso da posse da bola e a finalidade do jogo - Graham Henry explicou em tempos recentes essa ideia aos internacionais argentinos que se confessaram vantajosamente surpreendidos. A partir desta base são desenvolvidos, com o rigor necessário, os mais diversos gestos técnicos a que se junta uma cultura táctica que irá permitir a sintonia colectiva em cada momento do jogo : todos a lerem o mesmo e ao mesmo tempo. E assim conseguem, com competições equilibradas internamente e ao longo de todo o tempo de desenvolvimento dos jogadores, criar equipas de alto nível competitivo.

Num dos primeiros ensaios do jogo (15') favorável aos Barbarians - marcado pelo neozelandês George Bridge a passe de outro neozelandês, o terceira-linha Steven Luatua - o antigo abertura internacional inglês Stuart Barnes, comentou na Sky Sports: "nem precisou de olhar, ele sabia que o companheiro ia aparecer ali... são os dois neozelandeses...". Está tudo reconhecido, a formação neozelandesa, ultrapassando o mero ensino e desenvolvimento técnico que é a normalidade nos outros países, garante a coesão. Durante o percurso formativo neozelandês os jogadores aprendem a importância da Linha de Vantagem e da sua conquista, do reconhecimento de uma oportunidade pelo desequilíbrio que souberam ler no posicionamento defensivo da equipa adversária e aprendem ainda que devem estar mentalmente disponíveis para responder às propostas do companheiro portador da bola que é considerado o líder momentâneo a seguir e a apoiar, numa perspectiva de tudo procurar fazer para manter a bola viva, alinhando visões, conceitos e exigências na procura da eficácia colectiva. Com o jogo baseado na continuidade do movimento - os jogadores movem-se e posicionam-se de acordo com o movimento da bola e com a colocação dos adversários - os jogadores neozelandeses aprendem, desde cedo e para além de reconhecerem na velocidade de execução e de acção uma arma de excelência, as vantagens da evasão sobre a colisão, procurando entregar a bola antes ou ainda na fase de contacto - off-load - mas procurando o chão apenas quando se apercebem, por falta de apoio suficientemente próximo, ser essa a melhor maneira de garantir a posse da bola... para reiniciar a continuidade do movimento no tempo seguinte e tão rápido quanto seja possível. E assim constroem, tratando de desenvolver ao longo dos anos o domínio das técnicas das fases de conquista, a melhor e mais sustentável equipa do mundo.

O jogo de sábado mostra-se como exemplo vivo daquilo que a formação de jogadores deve seguir. O que significa que a formação e desenvolvimento, nomeadamente a portuguesa, devem aprender e utilizar os processos e métodos neozelandeses, esquecendo os métodos das escolas de velha guarda que, no fundo, no fundo, se limitam a esperar que os talentos ressaltem - a boa escola francesa perdeu-se no tempo e o próprio Didier Retière reconhece a necessidade da alteração urgente dos métodos. A Nova Zelândia, com pouco mais de 4,5 milhões de habitantes, sabe que é através da qualidade do desenvolvimento técnico dos seus jogadores que pode ombrear e ultrapassar os outros países do mundo rugbístico - e a qualidade significa rigor, rapidez e exigência na execução técnica, acerto nas decisões tácticas, domínio e preponderância do colectivo e assertividade na atitude.

Porque a vida nos ensina que a quantidade, por si, não garante qualquer qualidade; mas que a qualidade, essa sim, garante quantidade. E se queremos mais jogadores, tratemos de garantir a sua qualidade para que possam, pelas capacidades que demonstrem e pelos resultados que atinjam, atrair mais outros.

A descrição do ensaio de 1973 foi feita, para além das imagens, com a ajuda do The Guardian    

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