segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O USO DA BOLA: DOS ALL-BLACKS ÀS FRANCESAS

A primeira parte do recente Austrália-Nova Zelândia foi de se lhe tirar o chapéu - um dos melhores dos últimos cinco anos, afirmou um dos comentadores. De facto um 40-6 ao intervalo favorável aos neozelandeses para terminar num 54-34 com 12 ensaios para ver, é obra.

A entrada dos neozelandeses é formidável e recorrendo a todos os processos do jogo de movimento - adaptação ao posicionamento dos defensores, passes em off-load (14) adequados ao transporte da bola e linha de corrida do companheiro - criando sempre mais do que uma solução - num apoio constante e em tempo e com linhas de corrida adequadas a ataques ao ombro mais fraco, rodopios a libertar braços e a avançar sempre e a fazer parecer os australianos como defensores medíocres - 61% de placagens falhadas na 1ª parte. E quando não eram passes curtos eram longos a uma ou duas mãos, por cima ou por baixo, rápidos para libertar companheiris ou lentos para fixar defensores, demonstrando uma panóplia técnica (como fazer?) de excelência que torna letais as decisões tácticas (o que fazer? quando fazer?) nascidas da adaptação à movimentação defensiva.

Com um resultado destes - 20 pontos de diferença - e marcando 8 ensaios, os All-Blacks tiveram 42% de posse de bola e 43% de vantagem territorial. O que demonstra mais uma vez que a importância não está no tempo de posse mas sim na eficácia do uso que se faz da bola. E é por isso que existem leituras estatísticas que demonstram a vantagem de uma equipa sobre a outra: desde logo a relação “ultrapassagens da linha de vantagem” com o número de “rupturas” conseguidas. Neste campo os neozelandese conseguiram, com 182 passes e percorrendo 652 metros  - bastante superior à sua média que se aproxima dos 500 metros - ultrapassar 49 vezes a linha de vantagem para criar 27 rupturas (55%) - o triplo da sua média de 9 - e marcar 8 ensaios.No campo desta relação, os australianos conseguiram ultrapassar a linha de vantagem por 57 vezes mas apenas conseguiram 13 rupturas (23%) de onde resultaram os seus 4 ensaios para compensar a conquista de 556 metros com 215 passes efectuados. Ou seja e mais uma vez, os australianos mostraram-se como os reis das fases, levando o jogo de um lado para o outro do campo mas só garantindo eficácia quando o vencedor já se encontrava definido.

Esta vantagem demonstrada no uso da bola alicerçou-se, pela imposição da conquista de terreno, no facto de os australianos terem que ocorrer às áreas laterais do defensor em cunha - o que demonstra conhecimento antecipado do seu tipo de defesa por parte dos neozelandeses (o treinador da defesa, Nathan Grey, treina também os Waratahs) - e se virem obrigados a desproteger os corredores laterais do campo onde a superioridade numérica neozelandesa criava as rupturas necessárias.

De um ponto de vista defensivo os neozelandeses fizeram, com a pressão criada pela rapidez de subida, 162 placagens para um falhanço de 23 (86% de sucesso) contra 69% de sucesso dos australianos que fizeram 98 placagens, falhando 30. Para melhor se perceber a construção dos números da vitória valerá a pena comparar a capacidade defensiva dos Bases e 3ª Linhas de cada equipa: 58 placagens para os neozelandeses contra 35 dos australianos. Se analisarmos o papel dos mesmos jogadores enquanto “transportadores” teremos a vantagem de 270 metros para os neozelandeses contra 64 metros dos australianos numa demonstração de quatro vezes maior capacidade de perfuração. O que demonstra claramente a superior capacidade dos neozelandeses para descobrir e atacar o fraco do adversário

No fundo pode resumir-se que a vitória dos All-Blacks se configurou numa maior capacidade táctica individual que melhor decidiu para cada momento do jogo a solução técnica a utilizar para garantir o cumprimento dos Princípios Fundamentais do Jogo - avançar sempre, apoio, continuidade e pressão.

E se ver o jogo neozelandês é um prazer enorme, ver a equipa francesa a jogar no actual Mundial Feminino constitui um prazer do mesmo nível. De facto as francesas - vejam-se as duas primeiras partes contra a Austrália (48-0) e contra a Irlanda (21-5) - deram duas lições de rugby de movimento mostrando as vantagens do jogo que durante anos marcou a diferença do rugby francês - o french-flair - para as restantes formas de jogar. Se os jogadores neozelandeses têm capacidades de passe que os aproximam de basquetebolistas, as jogadores francesas não lhes ficam atrás na demonstração técnica. E sabem também e muito bem dar as costas antes do contacto para soltar a bola para a companheira melhor lançada e com a linha de corrida mais adequada como são capazes de executar passes-em-carga (off-loads) - 14 contra a Austrália e 18 contra a Irlanda - a uma mão com passes de pulso que lembram o andebol numa procura incessante do jogo ao largo para explorar a superioridade numérica construída. Ultrapassando a “linha de vantagem” contra a Austrália por 66 vezes e contra a Irlanda por 57 vezes, as francesas criaram, respectivamente, 18 e 13 “rupturas” de linha defensiva. Curiosamente as francesas dividiram o tempo de posse de bola com as australianas e tiveram apenas 29% de domínio territorial e 39% de posse de bola contra as irlandesas. Mas venceram sem problemas de maior os dois jogos.

Na próxima terça-feira a equipa feminina francesa jogará as meias-finais do Mundial contra a Inglaterra, numero 1 do ranking da World Rugby e a curiosidade sobre o seu comportamento competitivo é muito grande. Serão elas capazes de demonstrar aos jogadores e responsáveis da selecção masculina que este tipo de rugby, esta forma de jogar em movimento de acordo com a movimentação da bola e do adversário, representa a marca francesa de encarar o jogo e com uma maior possibilidade de garantir resultados? Veremos...

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