quarta-feira, 2 de setembro de 2020

MORRER DA CURA OU MORRER DE INCÚRIA?

A pandemia do COVID-19 colocou o Desporto numa terrível situação. Não só o português mas o mundial. No entanto por cá, com a pouquíssima cultura desportiva que nos caracteriza, a situação, sendo muito má, tende a ser pior.

Como recuperaremos? Como manteremos a atractividade para chamar os mais novos? Como garantiremos, com uma formação desportiva para a qual não surgem ideias de desenvolvimento, a continuidade e substituição dos que, nos próximos anos, irão deixar de ser atletas? Como, finalmente, perceberemos que o Desporto não é um mero entretenimento — excepto para os seus espectadores —mas é, isso sim, uma actividade com responsabilidades competitivas e sociais, que se afirma integrador e meritocrático e que tem, na sua base, critérios científicos e inovadores posteriormente transmissíveis e aplicáveis às mais diversas actividades.

Contudo, para que a sua prática, pelos tempos desajustados que atravessamos, não se transforme num foco de infecções provocado pela proximidade que no Desporto é usual e que no Rugby é uma constante do seu movimento, é fulcral a existência de regras e acções que minorem os riscos. Que devem ter, porque se trata, na sua essência, de uma questão de saúde pública, como seu princípio norteador o conceito: a pessoa primeiro, o jogador segundo; a saúde como prioridade, o desporto, o Rugby, depois.

A Direcção-Geral de Saúde, cumprindo as suas obrigações — embora pecando por tardia — produziu a Orientação 036/2020 com a qual pretende impedir a criação de focos infecciosos no interior das competições desportivas que possam transformar-se num foco comunitário infeccioso.

Estabelece assim o ponto 18 da sua Orientação:
18. As federações e os clubes considerarão a realização de testes laboratoriais para SARS-CoV-2 aos praticantes das modalidades desportivas , de acordo com a estratificação do risco da modalidade desportiva (Anexo 2 e 3), da situação epidemiológica a nível regional e local, e dos recursos disponíveis.

E fácil é perceber, lendo o documento, que o Rugby tendo —e bem! — sido qualificado como Risco Alto, a sua prática competitiva habitual, como se retira da interpretação do ponto transcrito, estaria sujeita e com carácter de obrigatoriedade, à realização de testes nas 48 horas anteriores a cada jogo.

Por razões que provavelmente dirão respeito aos problemas que a realização dos testes pode trazer — custo e número semanalmente elevados —surgiu, por parte da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto, uma comunicação, tida por resumo que visa realçar alguns aspectos, que mais não é do que a permissão para uma diferente e mais suave interpretação — o que não significa, infelizmente, mais justa. Reza assim o seu ponto 2:
2. A realização de testes para diagnóstico do COVID-19 poderá ser considerada pelas federações e clubes, sendo que, para este efeito, a DGS enquadra critérios com o objectivo de os auxiliar na decisão de realizar ou não na realização ou não dos referidos testes.

Repare-se na ambiguidade introduzida pelo poderá ser considerada que, uma óbvia transformação de sentido, permite transportar a decisão da realização dos testes para as federações desportivas. Analogamente seria como se fosse a capacidade descrIcionária das federações que determinasse a realização de testes antidopagem...

Ou seja, de um ponto que se entendia como obrigatório, passou-se para uma responsabilização federativa que ficará com o busílis de uma decisão para a qual não têm preparação ou capacidade. E, espanto dos espantos, as federações poderão decidir não realizar qualquer teste.

E porque é que esta decisão é grave?


Porque existem uns designados por assintomáticos —os infectados invisíveis — que se estima quantificarem 40% do número de infectados activos e que só têm os testes como forma de detecção. Portanto e sem testes, qualquer jogador, treinador, árbitro, director, pessoal médico, administrativo, ajudante, apanha-bolas ou qualquer outro agente que tenha um qualquer papel na organização do jogo pode tornar-se num transmissor que iniciará um foco infeccioso que, num ápice, se espalhará por familiares, amigos e conhecidos dos jogadores. E a modalidade a cair num absoluto descrédito...

Os assintomáticos, os infectados invisíveis, desconhecedores portadores de vírus, são o inimigo público nº1 da estrutura social desportiva. E constituem a principal razão para que existam testes — se os membros dos clubes forem suficientemente responsáveis, não será dos infectados que virá o perigo, porque esses, saber-se-ão quem são. Porque têm febre, tosse ou problemas respiratórios. O perigo vem daqueles de que se desconhece a infecção, os assintomáticos, os que não têm sintomas — e não têm mesmo! E não sabendo nada do seu estado, não terão, naturalmente, quaisquer responsabilidades no que possa, infecciosamente, suceder.

Recentemente o americano Centers for Desease Control and Prevention (CDC) veio a terreiro e nitidamente em favor de um qualquer interesse, afirmar da não necessidade de proceder a testes a pessoas sem sintomas. Agora, duas personalidades de renome, Harold Varmus e Ravij Shah, vieram, no New York Times, desmontar a farsa. E escreveram, referindo-se aos assintomáticos: "[…] este grupo representa quer a maior ameaça ao controlo da pandemia quer a maior oportunidade para acabar com ela.Ler texto completo aqui

E porque afirmam isto? Porque fazendo testes é possível determinar quem é portador do vírus, independentemente da existência de sintomas e assim controlar os seus contactos e impedir a construção de focos, permitindo quebrar cadeias e eliminar sequências. No Desporto, fazer testes significa garantir o controlo sobre a pandemia, dando confiança aos atletas para a sua prática competitiva plena.

No texto que publiquei anteriormente, propus uma série de alterações ao nosso jogo tradicional. No quadro determinado pela DGS essas alterações permitiriam descer o nível do risco, passando para o nível do Médio Risco. Mas continuaria a haver risco porque: 1.º Os testes aleatórios preconizados não garantiriam, pelo número reduzido de jogadores testados, segurança total; 2.º As 48 horas de intervalo entre a realização do teste e o início do jogo — embora necessárias pelo tempo de determinação dos resultados — permitem contactos que se podem traduzir em infecções e as tomadas de temperatura antes do jogo ou os termos de responsabilidade ignoram, pura e simplesmente, os novos assintomáticos. Que são, repete-se, o inimigo público do controlo da pandemia. Ou seja, fica-se entregue à sorte da casualidade...

Portanto, aquilo que defendo — essencialmente e na actual situação para os clubes que frequentam a divisão principal — e embora também sem total segurança pelo necessário intervalo alargado mas diminuindo claramente os riscos se houver da parte dos agentes e actores uma responsabilidade comportamental acrescida  — é a existência do jogo como preconizo no anterior post com testes realizados nas 48 horas anteriores — detectando infectados quer com ligeiros sintomas quer sem sintomas.

Mas, para que o jogo de Rugby possa, mesmo com alterações que diminuem o seu risco de contacto face-a-face, ser jogado de uma forma competitiva que possa garantir uma preparação que permita a presença com a qualidade necessária nos jogos internacionais que se realizarão numa altura ainda a determinar, a realização global de testes é decisiva.

É preciso que existam testes para que o Desporto —e  não só o Rugby — possa singrar e manter a visão da sua existência, mantendo o seu nível de atractividade suficientemente elevado para chamar a atenção. Mostrando-se como uma marca e como um campo de esperança!

Mas para que tudo isto seja possível, para que o Desporto seja um domínio seguro de competição é necessária o apoio de uma comparticipação estatal no actual custo dos testes. Até que surjam os testes rápidos e de custo acessível.

Muito se tem falado, pelas restrições que têm sido impostas, da possibilidade de morrer da cura. É verdade, se não houver as atenções necessárias os cuidados podem transformar-se em duras maleitas. Mas talvez seja ainda mais importante cuidar de não morrer de incúria. Porque no dilema que se nos apresenta de testes ou não testes, melhor é morrer da cura porque menos provável, do que morrer de incúria.

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