Joga-se como se treina! |
Não me parece que qualquer delas permita, sequer, qualquer argumento para anulação do ensaio. Vejamos então.
No Rugby só se pode placar o portador da bola que, por sua vez, tem diversas capacidades à sua disposição para o evitar: colisão, afastar com a mão, finta, engano e toda a sorte de astúcias de que possa servir-se. Obviamente cumprindo a Lei 9.11. E onde fica a proibição de saltar para evitar a placagem? Onde se determina a sua perigosidade só porque é um salto? Pode ser perigoso saltar se provocar uma colisão directa ao nível da parte superior do corpo, mas será perigoso se o salto for feito na direcção do espaço, do intervalo ou no salto para a zona do ombro fraco depois de um ataque ao outro ombro ou no passo-de-ganso do notável David Campese? ou saltar quando o defensor, numa tentativa de extensão desesperada tenta apanhar um pé ou mesmo as canelas do atacante? Como aliás de vê em dezenas de ensaios marcados em que o salto é a finalização, tendo por motivo ou a eficácia — atingir mais rapidamente a área-de-ensaio ou procurando atingir uma maior distância sempre com o objectivo de evitar uma placagem — ou o espectáculo — dando com o voo o sinal para o levantamento do entusiasmo das bancadas.
Como em todos os gestos do jogo, o salto pode ou não colocar em perigo a integridade física do adversário. Depende portanto e sendo cada caso um caso, exige-se a análise dos árbitros. Certo, certo, é o facto de não estar expresso em parte alguma das Leis do Jogo a proibição de saltar.
Saltamos porque queremos chegar mais longe, porque nos dá gozo, porque queremos evitar a placagem. |
O problema destas análises e afirmações é o de se basearem na tradicional cultura britânica de validade do costume, do hábito, sobre o definido pelo conjunto de regras. E, por isso, como nos apercebemos durante a recente tradução das Leis de Jogo 2021, o livro está cheio de incoerências, contradições e, mesmo erros. Principalmente quando da redução do texto — tornado cerca de 42% mais curto — em 2018. E disso estamos a dar conta à World Rugby com sugestões de clarificação e alteração.
Em 2017, no célebre Nova Zelândia-British Lions, um pontapé-de-penalidade no final do jogo (77’) e que definiu a vitória dos europeus por 24-21, foi assinalado pelo árbitro francês, Jerôme Garcés, que considerou faltosa uma placagem neozelandesa de Charlie Faumuina sobre o Lion Kyle Sinclair que, portador da bola, se encontrava no ar e que, portanto, não poderia ser placado. De imediato o capitão AllBlack, Kieran Read, comentou com algo como:"Então, quando fôr com a bola, salto para o placador e ganho uma penalidade...". É um facto que a penalidade foi aplicada de acordo com a letra das Leis do Jogo. Demonstrando o tremendo erro da sua redacção! Pela simples razão de que o portador da bola em corrida de velocidade tem, de voo, 50% do tempo da sua corrida e não tem, praticamente nunca — correr não é Marcha — os dois pés em contacto simultâneo com o chão. Ou seja e de acordo com a letra da lei, não tendo os pés em contacto com o solo, o portador da bola não pode ser placado — e acaba-se a placagem no rugby excepto para quem esteja parado ou a andar a passo. Isto é, a redacção da Lei 9.17: Um jogador não pode placar, entrar em carga, puxar, empurrar ou agarrar um adversário cujos pés não estão em contacto com o chão.” é um erro enorme e demonstrador de total ignorância da biomecânica da corrida — são coisas destas que me trazem sempre à memória o conceito de John Le Carré de que: “a secretária é um sítio muito perigoso para analisar o mundo” — e como tal não deveria estar descrita nas Leis do Jogo. E como se chegou até aqui?
Em 1995, no livro da IRFB, The Laws in Plain English — nos livros de Leis do Jogo mais antigos, para não falar do histórico “The Original Rules Of Rugby”, que tenho em casa, datado de 1981 ou na tradução portuguesa de 1990, nada é referido sobre o assunto — na Lei 26 - Jogo Desleal, (D) Jogo Perigoso, estabelecia-se assim:”6. Não placar o saltador no ar. Num alinhamento, qualquer jogador que toque ou puxe um pé ou pés de um adversário que salta para a bola, é culpado de jogo perigoso. No jogo-em-geral, qualquer jogador que plaque um adversário cujos pés não estejam em contacto com o chão porque está a saltar para apanhar a bola, é culpado de jogo perigoso.” Estavam lançados os dados: não é permitido placar um jogador que esteja a saltar para apanhar a bola! Nos alinhamentos e no jogo-em-geral. Em 2000 e em 2004, estabelecia-se — com uma redacção mais precisa — no mesmo sentido: jogador que estava no ar, na tentativa de apanhar a bola, não podia ser placado. Mas nada era dito sobre a proibição de saltar, nem tão-pouco, que o portador da bola não poderia ser placado mesmo se em salto.
A partir de 2011, com a passagem da lei de Jogo-Desleal de Lei 26 para Lei 10, dá-se uma revisão na escrita. Com duas alíneas a Lei 10 — Jogo Desleal, 10.4 Jogo Perigoso e Conduta Desadequada, passou a ter a seguinte redacção: "e) um jogador não pode placar um adversário cujos pés não se encontrem no chão; i) Placar o saltador no ar. Um jogador não pode placar ou tocar, empurrar ou puxar o pé ou pés de um adversário que salta para a bola num alinhamento ou no jogo-em-geral."
E aqui começou a confusão com o erro da introdução da alínea e) que, como já se viu, é inaplicável. Mas criou-se uma correcta redacção — alínea i) — que limita tudo ao que estamos, de facto, habituados: não se pode placar nenhum jogador que salta para apanhar a bola, seja em que circunstância fôr.
Com a redução do texto das Leis em 2018, o problema ampliou-se uma vez que, embora deixando clara a situação no alinhamento com a descrição da Lei 18, 29, e), foi retirada a parte final da alínea e) da anterior Lei 10 que passou a ter, agora na Lei 9.17, a redacção actual de proibição de placagem a quem não tenha os pés em contacto com o chão. Ou seja, resolveu-se generalizar — vá lá saber-se porquê — a anterior limitação de não placar apenas quem salta para a bola, passando a não permitir placar quem salta. Este alargamento descuidado mostra-se um disparate de bradar aos céus uma vez que ignora as propriedades da corrida e o objectivo do salto — atingir maior distância pela combinação da velocidade com a altura do salto — criando-se uma situação ambígua que faz depender do entendimento do árbitro a sua aceitação.
Em vez da clareza de deixar o defensor placar o portador da bola, no ar ou não, e, como é adequado, protegendo-o ao considerar jogo perigoso se o atacante atingir a sua cabeça, saiu a confusão.
Portanto as dúvidas sobre a validade do ensaio de Jonny May surgem apenas da mistura confusa — e que nada autoriza — de conceitos aplicáveis a outras situações. O facto de não se poder placar um jogador no ar, não significa necessariamente que não se possa saltar. Se assim fosse a pergunta de Kieran Read só podia ter uma resposta: sim! E o jogo transformava-se num outro jogo.
Solução? Alterar a Lei e voltar a escrever com o sentido anterior a 2004: “Um jogador não pode placar, carregar, empurrar, puxar ou agarrar um adversário cujos pés não se encontrem no chão durante o tempo de execução de um salto para agarrar a bola.” Deixando claro, então sim, que o transportador da bola — como sempre aconteceu — pode sempre ser placado, esteja ou não em voo e garantindo que o resultado final ficaria definido mais pelas acções dos jogadores do que pelas interpretações da arbitragem.
Este é só um exemplo do muito que deveria ser feito — simplificando e clarificando — nas Leis do Jogo como contributo para que a globalização da modalidade seja uma realidade mais competitiva e mais equilibrada.