terça-feira, 27 de março de 2012

PORQUE GANHA GALES?

"Para que haja coesão, esforço colectivo, é
preciso que se dê a possibilidade ao ego de
se dissolver com entusiasmo num investimento
que o ultrapasse e dê força à comunidade."
José Gil, filósofo

Uma grande equipa tem sempre atrás de si mais do que aparenta. Só bons jogadores não chega, só um bom treinador ou só um bom campo de treinos, tão pouco. É preciso muito mais.

A vitória de Gales com um Grand Slam no Seis Nações depois de um surpreendente Mundial – anteriormente, é bom não esquecer, tinha vencido o Mundial da variante de Sevens – não pode assentar apenas no acaso, na sorte do jogo ou na vontade dos deuses celtas.

Dois livros – “A bola não entra por acaso” de Ferran Soriano, sobre o Barcelona F.C. e a sua organização e o “Winning!” de Clive Woodward, sobre a conquista do Mundial de 2003 e a organização que montou – mostram bem quanto é preciso de organização, de conhecimento, de disponibilidade, de gestão quotidiana alicerçada numa visão global e de futuro. Enfim, para se ganhar é preciso alinhar uma parafernália de parâmetros que fazem surgir a sorte, dispensa o quase e permitem a vitória.

Claro que Gales tem notáveis jogadores de técnica elevada: um cinco-da-frente de se lhe tirar o chapéu por capaz de ultrapassar em muito a sua função primeira; uma terceira-linha capaz de ganhar todas as corridas com os seus opositores directos; umas linhas atrasadas comandadas pela inteligência táctica – um tratado no comando de tempos fortes, na imposição de ritmos - de um nº9 fora do modo habitual e que apresentam um padrão de potência (velocidade x peso) também fora de vulgar. É verdade que sim, mas e os outros? Não têm também bons jogadores, capacidades, aqui e ali, de grande talento? Têm, claro!

É preciso mais qualquer coisa para que uma equipa com esta juventude ganhe assim – jogando - e entusiasme os veteranos da geração de 70 como Gerald Davies, o capitão John Dawes, JPR Williams ou Gareth Edwards.

Para além da certeza de uma excelente organização desportiva de suporte e da qual, naturalmente, só posso adivinhar pormenores, três aspectos do jogo de Gales, que se podem notar em cada desafio, parecem-me essenciais para explicar a sua supremacia no rugby do norte do hemisfério: companheirismo, cultura táctica e condição física.

O rugby é, por excelência, um jogo altamente colectivo – ninguém ganha sozinho. A equipa de Gales mostrou sempre uma notável capacidade colectiva. Confiando uns nos outros, jogando sem individualismos, aparecendo a apoiar no tempo justo, abrindo linhas de passe, impondo a dúvida aos defensores, esforçando-se na emenda de eventuais erros de uns ou outros – isto é, o colectivo, o espírito de equipa, tornou mais fáceis os momentos mais fortes dos adversários e ajudou sempre nos tempos fracos próprios. O que permitiu a admiração de JPR Williams: “jogam uns pelos outros!”. E assim ganham. Sem vedetismos e com um claro e superior objectivo comum permanente a cimentar a ideia de defesa de uma camisola comum e que extravasa os limites do campo para chegar a cada galês. A questão: sendo uma equipa jovem, como conseguem? A resposta é óbvia: pelo trabalho e organização da equipa que os suporta.

Este companheirismo tem um suporte dentro do campo no elevado alinhamento da cultura táctica individual – saber qual instrumento utilizar? quando o utilizar? e como o utilizar? – que dão mostras quaisquer dos jogadores e que lhes permite tomar decisões concordantes e adequadas à situação. Em qualquer situação os jogadores galeses mostram ter uma leitura comum que, assentando na visão global e não no isolamento das partes, permite a continuidade assertiva do movimento pela conquista do terreno necessário à obtenção do desequilíbrio que garanta uma vantagem. Usando as fases que se apresentem como necessárias. Adaptando-se a cada situação, a cada problema. Assim, cada grupo que se organiza junto do portador da bola consegue tornar-se mais forte do que a soma das suas individualidades.

Não tendo nascido com este conhecimento foi com certeza necessário ensiná-lo. E é este alinhamento conceptual que os galeses mostram ao nível da sua selecção que, estando na base da qualidade do seu jogo, garantirá a sustentabilidade qualitativa das suas prestações futuras. Porque a sustentabilidade do futuro faz-se com o desenvolvimento desta cultura de mais nós e menos eus. Do somatório eficaz de decisões comuns que possibilita.

Gales ganhou jogos no final do tempo. Pois ganhou. Sorte? Principalmente a sorte de uma excelente condição física que permitiu manter a lucidez de leitura – pensar e decidir bem – nos momentos de maior cansaço – como são os vinte últimos minutos de cada jogo (aliás terá sido por uma boa condição física adequada ao jogo de Sevens que Portugal ganhou, nos últimos segundos, os jogos necessários – Japão, Rússia, Zimbabué - para garantir o último bilhete de entrada como “residente” no World Series).

A boa condição física, nitidamente superior às outras equipas, foi factor decisivo da vitória de Gales. Não uma condição física qualquer mas aquela que se adequa às necessidades e exigências do jogo: dos seus contactos, das suas lutas, dos seus saltos, das suas corridas, das suas velocidades, das suas concentrações, das suas dispersões. Uma condição física integrada, alinhada e adaptada às elevadas necessidades do jogo internacional.

Esta vitória de Gales e a qualidade do seu jogo – como diversos momentos que nos proporcionaram os All-Blacks - abre risonhas perspectivas para o desenvolvimento qualitativo da modalidade, mostrando que o futuro não estará limitado ao formatado jogo estereotipado, assente em jogadas previamente tipificadas e sem relação com a situação envolvente, que o receio do risco produz. Afinal, dizem estas equipas, o rugby é um jogo. Divertido.

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