terça-feira, 5 de março de 2019

“RUGBY COM PARTILHA” EM VALE DE JUDEUS

Os voluntários do “Rugby Com Partilha” no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus: Francisco Mendes Correia, Miguel Morgado, Manuel Cortes, João Paulo Bessa e António Abreu

Nunca imaginei que por ser treinador iria parar a uma prisão. Mas foi o que aconteceu.
Por convite do Manuel Cortes, fundador com António Abreu da Associação Rugby Com Partilha, fui dar um treino ao Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus.
Foi uma interessante experiência que leva a pensar nas metodologias a utilizar neste caso e que nos podem dar novas pistas para as situações habituais de treino.
Os reclusos são adultos e embora quase todos aqueles que participam nos treinos de rugby tenham algum conhecimento de uma ou outra modalidade desportiva, a grande maioria, senão mesmo a maioria, nunca tinha visto rugby. Portanto um treino para adultos sem referências anteriores da modalidade.
E com uma dificuldade acrescida: não têm acesso a jogos por via directa ou indirecta. O que impede o recurso à visualização de situações que possam permitir a imitação. A que se junta uma outra dificuldade maior: o pouco tempo de treino possível.
O quadro é este: adultos, sem referências da modalidade e sem a possibilidade de visualisar as acções globais que formatam o jogo. Então como transmitir os conceitos básicos que possam permitir, ultrapassando a falta de conhecimentos e experiência, praticar o jogo? Porque, seja qual for a situação, é a prática do jogo que interessa.
Se definirmos que o objectivo do jogo é a marcação de ensaios, ou seja, levar a bola até lá ao fundo e colocá-la dentro do castelo adversário, alguns princípios estratégicos e tácticos mostram-se intuitivos. E um dos jogadores, o Mauro, percebeu isso perfeitamente quando advertiu um companheiro: ”Tens que andar para a frente, senão está a jogar pela equipa adversária!”. Estava, numa clareza absoluta, expresso o primeiro princípio estratégico do jogo: Avançar sempre!
Alguns conceitos devem estar presentes em permanência em cada momento da aprendizagem, nomeadamente a simultaneidade dos parametros técnicos, tácticos, mentais e físicos. O que significa que a intensidade dos exercícios deve ser uma constante, partindo da apreensão do gesto a velocidades muito lentas para, compreendido, passar de imediato à execução em alta intensidade. E sempre com o conceito de “game sense” presente desenvolvendo outro princípio básico de velocidade no passe e na recepção. 
Assim amplia-se a fluidez dos gestos no cumprimento das exigências tácticas básicas sem esquecer, porque a sensação de melhoria constante e progressiva é essencial para a adesão ao projecto e sua continuidade. Aproveitando para implementar a noção da grande responsabilidade do receptor - que, apoiando e abrindo linhas de passe claras e tão fáceis quanto possíveis - no êxito e eficácia dos passes, possibilitando a continuidade do jogo numa clara preferência pela evasão sobre a colisão.
Nas condições possíveis deste programa de treino, o domínio da relação passe/recepção constitui o factor-chave para a manutenção da sua atractividade, interesse e continuidade.
A atracção deste desporto colectivo de combate, com as suas regras comportamentais e com a fisicalidade que exige, é, naturalmente — é evidente a verificação — bem recebida pelos reclusos que resolvem aderir ao programa. Que se mostram claramente abertos, num claro comportamento de esponjas, ao conhecimento e aprendizagem. O que coloca — para evitar qualquer tipo de desilusão — uma enorme exigência de conhecimentos de treino e domínio das técnicas gestuais a que se acrescenta a capacidade de comunicação nos voluntários participantes.
Nas condições do programa — pelo menos nas condições que conheço de Vale de Judeus — parece que o objectivo deve estar confinado ao jogo das variantes reduzidas do jogo: Sevens ou Tens. Quer pela maior facilidade de compreensão colectiva, quer por razões de segurança física dos intervenientes. No XV, para além de uma complexidade técnico-táctica superior, acresce as formações-ordenadas com disputa pela posse da bola que exigem recursos técnico-físicos que não são atingíveis num programa desta natureza. Ora essa impossibilidade colocará, pela falta de treino adequado, as primeiras-linhas em situação de risco da sua integridade física.
Nos Sevens ou Tens, para além de não ser comparável o risco inerente às formações-
ordenadas, tem ainda a vantagem de uma superior participação de movimentos com bola 
— isto é, possibiltam um maior contacto de cada jogador com a bola e portanto mais passes e recepções e mais decisões por jogador.
O programa é muito interessante e projecta para um domínio diferente do habitual onde — e para além dos aspectos sociais de abertura e inserção — é necessário reflectir sobre as metodologias de treino e adaptá-las a estas condições objectivas que diferem das correntemente conhecidas. O que pode significar a descoberta de novos processos. Isto é o programa serve ambos os lados: quem aprende e quem ensina.
Foi uma tarde muito interessante e recompensadora na adesão demonstrada pelos reclusos participantes e já fui desafiado para realizar uma outra sessão com a dominante da explicação do jogo, dos seus princípios e da sua geometria. Lá estarei.


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