quarta-feira, 23 de outubro de 2019

APRENDER COM OS ALLBLACKS

Ver jogar os All Blacks é uma maravilha! Cumprem os princípios estratégicos com as tácticas adequadas e com o recurso às técnicas impostas pelas situações e são eficazes. Ao formarem o “haka” dizem logo ao que vêm: a primazia é para o colectivo! E o avanço do capitão para a frente da formação em cunha afirma, desde logo, que o seguir o líder é um princípio do seu jogo — e o líder de cada momento é o portador da bola a quem todos os outros companheiros devem obediência, apoiando os seus movimentos, abrindo linhas-de-passe e garantindo, com o melhor da sua disponibilidade e esforço, a continuidade do movimento. E o propósito, resultante de permanente aprendizagem, é evidente: proporcionar à equipa a marcação de ensaios!

E, para isso, sabem que é necessário ultrapassar a linha imaginária que divide os dois campos — a linha-de-vantagem — para conquistar quer a vantagem numérica, quer a vantagem territorial, aproximando-se da área-de-ensaio adversária e encurtando o terreno nas costas da defesa, diminuindo-lhe o espaço de manobra — encostando o adversário às cordas como se diz em linguagem mais popular. E a desordem feita de linhas de corrida com ângulos e tempos diferentes, abre diferentes possibilidades de continuação, proporcionando ao portador da bola decidir por uma conexão que lhe pareça ou mais eficaz ou de menor risco. Tudo dependendo da avaliação momentânea que consiga fazer. Ora a tomada de decisão, feita nestes curtos espaços de tempo obriga a que tenha havido experiências anteriores que guiem para a melhor opção de acordo com o objectivo do ataque: manter a posse, avançar, apoiar, continuar e criar uma situação de pressão tal que leve o adversário a abrir espaços e permita chegar ao ensaio.

Para que as coisas assim sejam, é necessário que tudo comece na formação. Porque embora muito antiga — em 1905 um erro de edição num jornal inglês trocou o espanto do jornalista na capacidade de passe como se fossem all backs em All Blacks para sempre — não nasce com os neozelandeses a notável capacidade — que exige confiança e disponibilidade mental — de viver confortavelmente o gosto da desordem de que dão mostras. Mas é uma cultura e isso ajuda muito. E como é que se chega lá? Ou seja e de outra maneira, pode chegar-se a jogar de forma próxima daquilo que fazem os AllBlacks? Pode e os japoneses mostram-no. Como?

No seu sistema de formação os neozelandeses usam o conceito do game sense que se pode ilustrar pelo bem conhecido aprende-se a jogar, jogando. Ou seja, toda a aprendizagem é feita em torno do jogo e das suas complexidades que vão sendo desbravadas pela prática que vai fazendo descobrir as soluções mais simples e eficazes para cada situação. Como aliás se conhece da aprendizagem futebolística — o conhecido futebol de rua — feita à base de jogos com aqueles que estão...

E assim o passe deixa de ser um gesto técnico de um só desenho para se definir apenas como a forma eficaz de entregar a bola a um companheiro em melhores condições para continuar o movimento. O que significa que o gesto técnico se torna de desenho múltiplo de acentuadas diferenças de acordo com as circunstâncias mas subordinado ao objectivo essencial: entregar a bola a um companheiro. E assim o gesto técnico do passe realiza-se por cima, por baixo, por trás, pela frente, de forma curta ou comprida adaptando-se à situação que cada jogador enfrenta e esquecendo a figura tradicional aprendida ao longo de horas intermináveis de gesto único.

O passe do capitão Kieran Read que permite o 4.º ensaio ao seu talonador, Coddie Taylor, é uma clara demonstração do resultado do método neozelandês do game sense. Naquela situação de penetração nas linhas defensivas adversárias e na altura que é placado, Read sabe que o ensaio —  que é o foco do jogo da sua equipa —apenas depende da sua capacidade de entregar a bola a um companheiro que ele sabe que aí estará em apoio e, em vez de se deixar ir ao chão com a preocupação de guardar a bola à espera de companheiros que, em ruck, a recuperem, preferiu o risco de, caindo no solo de costas, levantar a bola e fazer um passe na direcção em que o apoio se aproximava. Belo gesto e belo ensaio!

É fácil atingir este nível de jogo? Não! exige muito treino, muito trabalho, muito ensino e ainda a possibilidade, para que se desenvolva até aos últimos pormenores, de enquadramento visual, isto é, que possa ser visto para ser imitado, permitindo assim o seu desenvolvimento com a introdução de novos gestos. Mas é possível!

E se assim é, porque não utilizamos, nós portugueses, os processos da formação neozelandesa?


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